No momento em que o grupo extremista Talibã retomou o poder no Afeganistão, em 2021, Shabir Ahmad Ahadi soube que não poderia voltar para casa. Diplomata a serviço do antigo governo, no Irã, e membro da minoria xiita, contrária ao regime, ele e a família se viram diante das portas do próprio país fechadas. E de um prazo de 15 dias para deixar o território vizinho.
Com o visto humanitário em mãos, Shabir desembarcou com a esposa grávida de 8 meses, a mãe idosa e dois filhos pequenos no Aeroporto de Guarulhos, em junho de 2022, sem nenhum tipo de orientação. Na espera por algum auxílio, sem falar português e com pouco dinheiro, a família afegã passou sete dias dormindo nas cadeiras do aeroporto, racionando biscoitos diante dos preços superfaturados.
Ainda sem retorno dos órgãos para refugiados do governo, a família foi recebida na casa de acolhimento Vila Minha Pátria, em Morungaba (SP), mantida pela Convenção Batista Brasileira. Meses depois, passaram a viver em um apartamento em Brasília, cedido pelo prazo de um ano pela Igreja Batista.
As barreiras culturais e de idioma, no entanto, dificultam a procura por emprego e a autonomia de Shabir e dos parentes no Brasil. Eles também mantêm os pensamentos nos familiares presos pelo regime fundamentalista do país natal.
No mês do Ramadã, que termina nesta sexta-feira (21/4), os afegãos lutam para manter a cultura viva e a esperança de começar uma vida nova.
Fronteiras brasileiras
O Brasil é o único país que concede visto humanitário a cidadãos do Afeganistão. No entanto, apesar do pioneirismo, o governo não foi eficiente em criar uma política de acolhimento.
“Chegamos ao aeroporto depois de 20 horas de viagem, sem nenhuma referência. Não falávamos uma palavra em português, e ninguém nos entendia. Ficamos com medo de sair do aeroporto e não conseguir mais voltar, porque não sabíamos como funcionava o transporte, não falamos a língua e tínhamos pouco dinheiro conosco, não muito”, lembra Shabir.
A expectativa era chegar em território brasileiro e abrir caminhos para os demais irmãos – a mais nova, Ferooza, foi vítima de violência doméstica e impedida pelo marido de continuar os estudos. Outros dois foram presos e ameaçados pelo regime fundamentalista.
As preocupações com os familiares que ficaram no Afeganistão, em meio às ameaças do grupo extremista no poder, dividiam espaço com as dúvidas se ir para São Paulo foi, de fato, a decisão certa.
“Não tínhamos mais dinheiro, nem para onde ir, os lanchinhos que trouxemos estavam acabando. Eu estava rezando para Deus e pensando: ‘o que fizemos da nossa vida ao vir para o Brasil'”, conta o diplomata.
Depois de uma semana sem respostas, eles pediram abrigo a voluntários que foram até o local buscar outro grupo de cidadãos islâmicos. Apesar da falta de espaço, em razão da gravidez da esposa e da saúde delicada da mãe, a família foi recebida na casa de acolhimento Vila Minha Pátria, mantida pela agência missionária da Convenção Batista Brasileira.
O local abriga cerca de 160 refugiados de origem afegã em uma chácara em Morungaba (SP), a 480 km da capital paulista. Depois de quase cinco meses, os membros da família receberam a notícia de que uma igreja em Brasília poderia fornecer um apartamento na cidade, que agora eles chamam de lar.
Controle extremista
A família de Shabir integra um grupo de 3,3 mil afegãos que chegaram ao Brasil entre janeiro e outubro de 2022, tendo o aeroporto de Guarulhos como porta de entrada. No auge do fluxo migratório, no fim do ano passado, cerca de 300 pessoas permaneceram acampadas em barracas improvisadas no terminal 2 do aeroporto.
A movimentação intensa para deixar as fronteiras afegãs foi motivada pela tomada de poder do regime Talibã, grupo político que restringe direitos fundamentais de parcela significativa da população, em especial, mulheres e minorias de fé xiita.
Pouco depois de retomar o controle do país, o grupo anunciou a reintrodução de execuções e amputações de supostos criminosos, ato que virou um dos símbolos do primeiro governo no Afeganistão, no período de 1996 a 2001.
No fim do ano passado, autoridades do país proibiram televisão, música e cinema. Também impediram meninas com mais de 10 anos de irem à escola, e mulheres de trabalharem fora de casa.
Em um país marcado por divisões religiosas e étnicas, profissionais ligados ao governo derrotado, como Shabir e os irmãos dele, também são perseguidos em um vaivém de prisões injustificadas e solturas.
“Eu ainda tenho dois irmãos detidos no Afeganistão, e eles estão sendo torturados pelo regime. Um deles ficou na prisão por um tempo, mas depois foi solto. Eles não têm autorização para trabalhar, os filhos deles não podem ir a escola. No nosso país, família é a coisa mais importante. Eu fico com o coração dolorido em saber que meus irmãos ainda estão lá”, lamenta.
“É uma preocupação constante. Minha mãe chora toda noite por eles. Sempre que ela come algo, pensa neles, bebe algo, eles vêm à mente”, lamenta.
Nova vida
A pequena Fátima Ahadi, de 7 meses, conheceu a nova vida em território brasileiro. Rima, 25, esposa de Shabir, deu à luz na casa de acolhimento em São Paulo – em uma espécie de renascimento de toda a família. Pouco tempo após a chegada da matriarca da família e do filho diplomata, vieram um irmão e a esposa dele, também grávida.
Depois de meses de tentativas de autorização para deixar o território iraniano sem o marido, a irmã Ferooza também chegou ao Brasil. Ao todo, 10 integrantes da mesma família moram no apartamento da capital federal, entre os quais duas crianças são brasileiras.
“Ferooza tinha um problema com o esposo no Irã, que é um primo. Ele batia nela, não deixava ela estudar, trancava ela em casa. Ela me pediu ajuda e eu a trouxe para minha casa, dei suporte para continuar os estudos e ela concluiu a faculdade de arquitetura. É um orgulho para nós”, lembra o irmão mais velho.
Pais dos pequenos Mohammad, de 4 anos, Duny, de 2, além da bebê brasileira Fatima, Rima e Shabir se preocupam, principalmente, com a instrução dos três filhos. “O principal motivo para virmos ao Brasil é pelo futuro deles. É muito importante para nós que as meninas estudem”, frisa o pai das crianças.
“Meu filho tem autismo, ele demanda cuidado na escola, pela nossa cultura e sem falar a língua. Mas a maior preocupação é que eu não tenho um emprego aqui. Eu trabalhei como diplomata, tenho dois mestrados, doutorado na Europa, falo inglês, e ainda assim, não tenho emprego. Meus irmãos também não”, comenta o afegão.
Pelo período de um ano, a igreja fornece uma ajuda de custo para mantê-los. Mas, a preocupação com o fim do período é frequente. As barreiras culturais e o idioma têm dificultado a busca por uma colocação no mercado brasileiro. O sonho do pai dos três meninos é voltar a trabalhar com relações internacionais ou em uma universidade, e continuar a estudar.
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