quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

PANDEMIA E REPRESSÃO À MIGRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

 A pandemia de covid-19 exigiu da maioria dos países do mundo restrições ao trânsito internacional. O lado perverso dessas medidas de segurança sanitária são o recuo da hospitalidade e as hostilidades territoriais com os migrantes vulneráveis. Na contramão da livre circulação presente nas narrativas da globalização, países da América Latina fecharam suas fronteiras terrestres e aéreas, ignorando as milhares de pessoas que ficaram em situação de insegurança social, sem o apoio dos governos e dependendo da ajuda de ONGs ou caridade. Os episódios lembram o Rio de Janeiro do fim do século 19, em que imigrantes europeus foram isolados longe do centro da cidade em decorrência da febre amarela.

Crédito imagens: Foto Adobe Stock


O nal do século 19 assistiu a um signicativo uxo de migrantes vindos da Europa em direção ao Brasil. A livre circulação dessa mão de obra, em substituição ao trabalho dos escravizados, defrontouse com um conjunto de variáveis endógenas: a alta mortalidade causada pela epidemia da febre amarela colocava em risco o projeto migratório nacional. Na década de 1880, a cidade do Rio de Janeiro destacava-se como o principal ponto de conexão e distribuição dos migrantes europeus na América do Sul. Em maio de 1883, no auge da epidemia, foi fundada a Hospedaria Ilha das Flores, na entrada da baía que dá acesso à cidade – onde hoje se localiza o município de São Gonçalo. A edicação se justicou, em parte, como método de isolamento preventivo para os migrantes europeus recém-chegados e para mantê-los espacialmente distanciados dos moradores e frequentadores das áreas centrais da cidade, especicamente, dos cortiços. Só para contextualizar, em 1893, a estalagem carioca ‘Cabeça de porco’, no centro da cidade, foi destruída com a justicativa de zelar pela higiene urbana, como conta Sidney Challoub no livro Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial (Companhia das Letras, 1996).

Nesse cenário, a modernidade urbana carioca – criada de forma autoritária – somente foi possível porque a livre circulação de migrantes na cidade esteve acompanhada de um rigoroso controle da população, em defesa da saúde pública. Daí os prolongados dias de quarentena e isolamento dos recém-chegados da Europa na Ilha das Flores.

Apesar da distância temporal, há algo em comum entre a epidemia de febre amarela do século 19 e a pandemia da covid-19. No Brasil de 2020, de março a outubro, mais de 160 mil pessoas morreram acometidas pela doença. Em ambas as situações, a estrita relação entre migração e saúde pública está presente. No contexto da febre amarela, o discurso e as ações políticas favoráveis à migração internacional – das pessoas vindas da Europa – justicaram um conjunto de medidas para uma reforma urbana autoritária. Com vistas a assegurar o livre trânsito dos migrantes para o trabalho, foram implementadas políticas públicas como as derrubadas dos cortiços e a edicação da hospedaria dos migrantes em Ilha das Flores, por exemplo. Naquele período, o cerne era o uso e a distribuição da população europeia nas lavouras cafeeiras e na incipiente atividade industrial no estado do Rio de Janeiro. Já em 2020, uma época em que a circulação entre países é uma das características da globalização e em que há cerca de 272 milhões de migrantes internacionais e 25,4 milhões de refugiados, é preciso muito mais atenção para reconhecer as ações de controle e cerceamento das pessoas no espaço internacional.

O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) desvelou, em seus últimos trabalhos, como a fábula da globalização inventa as narrativas da livre circulação de pessoas e uidez das fronteiras internacionais. E a atual experiência mundial face à disseminação do novo coronavírus fornece material suciente para que se descone desses discursos otimistas da globalização. A seguir, apresentamos um panorama de algumas das restrições ao trânsito de pessoas nos pontos de passagem fronteiriços entre os países latino-americanos.

O fechamento das fronteiras terrestres

Na América Latina e no Caribe, entre os dias 14 e 30 de março de 2020, 20 países fecharam suas fronteiras terrestres, impedindo o movimento e deslocamento entre eles. Em Equador, Chile e Honduras, além do fechamento das fronteiras, foi decretado o estado de exceção, com medidas de restrição interna à circulação da população e toque de recolher. No Brasil, entre os meses de março e agosto de 2020, 18 portarias ministeriais e interministeriais referentes a medidas sanitárias de restrição à entrada e saída de pessoas pelas fronteiras internacionais foram editadas, conforme dados levantados por Augusto Veloso Leão e Duval Fernandes na pesquisa ‘Políticas de imigração no contexto da pandemia de covid-19’.

A portaria interministerial n. 120, publicada pelo governo brasileiro em 17 de março de 2020, inaugurou essa série de normativas. Ela proíbe a entrada da população vinda da Venezuela por vias terrestres e justica-se pela incapacidade de o Sistema Único de Saúde (SUS) assegurar tratamento aos migrantes contaminados com a covid-19, pelos impactos dessa situação e pelo possível colapso do sistema de saúde brasileiro. Entre os grupos estrangeiros no país, as restrições à circulação da população venezuelana foram as mais rigorosas: foi proibido, sem aviso prévio, até mesmo o deslocamento pendular – trânsito comum entre os habitantes das cidades fronteiriças para o trabalho e/ou estudo e outras necessidades diárias. Essas restrições, adotadas em um contexto de emergência sanitária, alteram bruscamente a organização e o modo de vida de um conjunto de pessoas e precisam ser problematizadas como uma das questões fundamentais da relação entre migração, território e soberania nas atuais políticas de Estado na América do Sul.

Chama a atenção que, diante da situação emergencial, tenham sido os migrantes venezuelanos os primeiros alvos de políticas rigorosas de retaliação e suspensão do direito de ir e vir. Tem-se observado, desde 2016, um incremento no uxo migratório dos venezuelanos ao Brasil. Em 2018, o Conselho Nacional dos Refugiados (Conare) passou a reconhecer como “grave e generalizada a violação dos direitos humanos na Venezuela” em suas decisões de pedidos de asilo e, com isso, foram concedidos 61.681 reconhecimentos de refúgio. No ano seguinte, o país registrou cerca de 75 mil residências ativas de venezuelanos – concentrados sobretudo no estado de Roraima. Entretanto, apesar desse reconhecimento e do fato de o Brasil ter acordado o recebimento de migrantes e refugiados vindos da Venezuela, a fragilidade dessas ações governamentais e das organizações internacionais são expostas diante da pandemia do novo coronavírus. Em trabalho recente, Rickson Rios Figueira, da Universidade Federal de Roraima, destaca a situação de vulnerabilidade desses migrantes no estado – indígenas pertencentes a grupos originários da Venezuela, crianças e adolescentes sozinhos ou acompanhados, mulheres atingidas diretamente pelo desemprego – frente à pandemia de covid-19. 

Discriminação contra crianças venezuelanas 

Mulheres e crianças são as mais recentes integrantes dos uxos migratórios internacionais. Desde 2014, os mais hostis tratamentos reservados às crianças migrantes têm sido observados no continente americano. Nos Estados Unidos, em nome da regularização migratória, crianças são separadas dos seus pais e têm como destino os centros de detenção e connamento. No Brasil, nesses tempos pandêmicos, é comum que crianças venezuelanas, como aponta Rios, tenham sofrido atos de discriminação e vivenciado situações de desamparo ao longo do seu cruzamento na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. 

Se as primeiras restrições institucionais deram conta do cerco da fronteira norte, no limite entre Venezuela e Brasil, a Portaria n. 152, de 27 de março de 2020, avança sobre a entrada por vias aéreas de estrangeiros de todas as nacionalidades. Assim, em uma escalada de normativas ministeriais e interministeriais, o fechamento das fronteiras geográcas para os não nacionais passa a ocupar um lugar de destaque como medida sanitária para mitigar a expansão da covid-19.

O fechamento da fronteira não foi uma estratégia exclusiva do Brasil. Argentina e Paraguai, ao reconhecerem a precariedade das medidas sanitárias adotadas pelo Brasil, implantaram de pronto ações emergenciais para o fechamento dos pontos de passagem fronteiriços com o vizinho. Essas ações provocaram impactos tanto para a população transfronteiriça quanto para aqueles migrantes paraguaios e argentinos que, estando no Brasil, pretendiam retornar aos seus países de origem.

O fechamento da Ponte da Amizade 

Essas restrições fronteiriças entre países, incluindo-se também a Venezuela, não acontecem em um espaço vazio de interações sociais. Ao contrário, são lugares marcados por uma dinâmica de trânsito e mobilidades populacionais historicamente constituídas entre esses países. O uxo migratório do Brasil para o Paraguai ocorre desde a década de 1950, com a chegada dos brasileiros por lá. É interessante também observar que, ao longo dos 1.365 km de extensão da fronteira entre os dois países, localiza-se uma das maiores aglomerações fronteiriças do Cone Sul: as cidades de Foz do Iguaçu (Brasil) e Cidade do Leste (Paraguai). Desde 1964, a Ponte da Amizade interliga essas cidades e faz circular regularmente pessoas, bens, mercadorias e informações. Apesar da frequente migração pendular – são quase 70 mil pessoas se deslocando diariamente entre aquelas cidades –, o governo do Paraguai anunciou, no dia 17 de março de 2020, o fechamento da ponte.

As ações de “saúde pública” que se destacam nessa fronteira são de ordem militar e de controle da área: embarcações ao longo do curso médio do Rio Paraná, uso de aeronaves e presença da polícia civil nacional paraguaia na Ponte da Amizade. A medida também alcançou os paraguaios que se encontravam na Argentina, com restrições ao retorno e repatriamento. Organizações e coletivos sociais se uniram aos migrantes – que, nas redes sociais, disparavam hashtags como #MigrarEsunDerechoRegresarTambién (em português, ‘migrar é um direito, regressar também’) e #ParaguayTambíenEsNuestraCasa (em português, ‘Paraguai também é nossa casa’) – em manifestações públicas diante da situação complexa e tensa envolvendo o Paraguai e a Argentina e da falta de uma política em comum que atendesse aos migrantes. Circulou também nas redes sociais a imagem desses migrantes na Argentina portando cartazes com os dizeres: “estamos presos, nossas lhas estão nos esperando, estamos dormindo no chão, não temos comida desde 26 de abril, portanto, pedimos, por favor, para regressar ao Paraguai”

Desde o nal da década de 1940, a Argentina se apresenta como o principal destino para os migrantes paraguaios. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2008, cerca de 323 mil pessoas nascidas no Paraguai residiam na Argentina. A maior parte dessa população vem dos Departamentos de Itapúa, Caaguazú e São Pedro e, na Argentina, se concentra nos centros urbanos, como Buenos Aires. Esses migrantes assumem, em geral, trabalhos precários, em setores como construção civil ou serviços domésticos. Trata-se, segundo o PNUD, de uma migração irregular, o que implica na perda de direitos de acesso à saúde e ao seguro social. Diante das restrições ao retorno dos migrantes impostas pelo governo do Paraguai, aliadas à ausência de política de acolhimento a essa população na Argentina, criou-se um cenário de tensão entre governos, a população migrante e a não migrante e as organizações sociais.

O Brasil fecha a fronteira. A Argentina fecha a fronteira. O Paraguai fecha a fronteira. Apesar dos inúmeros atos celebrados no interior do acordo do Mercosul, estes de nada valeram para garantir os direitos dos migrantes em tempos pandêmicos. Eles foram assistidos e acolhidos pelas escassas organizações humanitárias e coletivos migratórios. Enquanto os órgãos ociais de comunicação do governo brasileiro alardeavam sobre as portarias restritivas à circulação e o fechamento das fronteiras internacionais, nas redes sociais as organizações se esforçavam para dar visibilidade à falta de ações de apoio aos migrantes, como buscar estratégias para que retornassem aos seus países de origem ou fossem acolhidos com dignidade nos países de destino. 

Ainda que os Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) tenham acordado, em 2018, o Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, dois anos depois, no contexto da pandemia de covid-19, as medidas sanitárias restritivas à circulação justicaram uma escalada de ações contrárias aos direitos de migrar. As instituições não se orientaram para a gestão da mobilidade internacional da população em situações de emergência de saúde. Muitos dos migrantes foram deixados à própria sorte, vagando pelas fronteiras e assistidos pela caridade local.

Fala-se muito atualmente da velocidade das tecnologias de informação e do transporte, do encurtamento das distâncias geográcas e da uidez do território. No entanto, durante a pandemia, o que se vê é o recuo da hospitalidade e o excesso de hostilidades territoriais (fechamento das fronteiras terrestres, vigilância e militarização nos pontos de passagens) com os migrantes vulneráveis, justamente os mais ilustrativos das narrativas da globalização. Isso mostra aos cientistas sociais que será necessário, no plano teórico e empírico, rever o signicado da migração internacional e transfronteiriça, assim como reconhecer, mais uma vez, a presença do velho Estadonação e seus mecanismos disciplinares, de vigilância e de controle sobre a população. No século 19, na cidade do Rio de Janeiro, esses dispositivos andaram juntos para a manutenção de um uxo de trabalhadores estrangeiros. No século 21, eles voltam a ser acionados, mas, desta vez, para conter o movimento de uma população migrante e estrangeira não desejável, em prol da emergência sanitária internacional.

Gislene Santos Núcleo Interdisciplinar dos Estudos Migratórios, Programa de Pós-Graduação em Geograa, Universidade Federal do Rio de Janeiro 

Ciências Hoje

www.miguelimigrante.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário