Os
convertidos em geral tendem a desenvolver e cultivar uma espécie de moralismo
de tipo maniqueísta, marcado por um maior ou menor grau de dualismo. Não raro,
fixam fronteiras rígidas, precisas e intolerantes entre o bem e o mal, os
“nossos” e os “outros”, os “de dentro” e os “de fora”, os “fiéis” e os
“infiéis”, os “patriotas” e os “inimigos da pátria”. Alguns casos emblemáticos deixaram
as digitais em seus escritos, como Paulo de Tarso, Agostinho de Hipona, Calvino...
Conversão e intransigência moram vizinhas. Em se tratando de um Brasil
hiperpolarizado, muitos dos que passam a essa postura dualista começaram a sair
às ruas e a posicionar-se na política apenas nos últimos anos. Falando ainda do
território brasileiro, uma outra polarização divide os grupos politicamente
mobilizados em manifestações públicas, sejam elas reais ou virtuais: os que se
dizem de direita e os que se identificam com a esquerda; os que vestem as cores
“verde e amarela” e os que preferem a cor “vermelha”.
Ambas
essas polarizações, entretanto, escondem um antagonismo bem mais profundo,
cujas raízes históricas e estruturais, em terras de Santa Cruz, mergulham na
noite dos tempos. Trata-se do abismo crescente entre os que vivem na carência e
os que habitam a opulência; os que para sobreviver praticamente chafurdam do
lixo e os que acintosamente navegam no luxo. Tanto a carência quanto a
opulência encontram-se fora do espectro elástico dos direitos humanos. A
primeira por falta dos direitos básicos e essenciais, a segunda por excesso de
bens supérfluos e pelos privilégios desfrutados ao longo dos séculos. A
consequência é que uma e outra, como face e contraface da mesma moeda, juntas,
combinadas e interdependentes, concentram ao mesmo tempo renda e exclusão
social.
No
rastro perverso da pandemia Covid-19, as polarizações tendem a agravar-se. Os
ricos se tornam mais ricos “às custas” dos pobres que se tornam mais pobres,
alertava já no início da década de 1980 o então Papa João Paulo II. Desde a
inauguração da Doutrina Social da Igreja, porém, com a publicação da Carta
Encíclica Rerum Novarum (1891), de
Leão XIII, a denúncia sobre as desigualdades sociais toma espaço relevante no corpus secular desse ensinamento
pastoral. O núcleo fundamental de semelhante alerta profético consiste na
sequência entre a Constituição Pastoral Gaudium
et Spes (1965), aprovada pelo Concílio Vaticano II, e a Carta Encíclica Populorum Progressio (1967), ambas coordenadas
pelo cardeal Montini, o qual, com a morte de João XIII, viria a se tornar o
Papa Paulo VI.
Tomemos
dois estudiosos contemporâneos que têm se debruçado longamente sobre a temática
das assimetrias socioeconômicas: o economista francês Thomas Pikety e o
sociólogo brasileiro Jessé José Freire de Souza, respectivamente mais perto de
nossos dias e mais perto de nossa terra. Um e outro, com farto material de
dados, números, estatísticas e análises, põem a nu um sistema em que a própria
produção encontra-se contaminada pelo vírus de uma disparidade progressiva.
Mais grave ainda, a distância entre o pico e a base da pirâmide social tende a
se aprofundar em tempos de crise. Em outras palavras, os desequilíbrios
econômicos e sociais acentuam-se na proporção inversa do crescimento de bens
produzidos.
Por
isso, não basta proclamar o aumento do PIB (Produto Interno Bruto) como
panaceia para todos os males e crises. Além da quantidade a ser produzida, é
necessário e urgente perguntar como serão distribuídos os frutos somados do
trabalho humano. E mais, em termos de produção é preciso perguntar ainda o que,
como e para quem produzir? Como envolver as instituições da sociedade civil e
demais agentes sociais sobre as decisões econômicas a serem tomadas? Como criar
novos canais, instrumentos e mecanismos de participação popular, no sentido de
ampliar o processo democrático de produção-comércio-consumo? E tudo isso sem
deixar de lado seja a preservação da vida em todas as suas formas
(biodiversidade e o equilíbrio ecológico), seja o legado sustentável para as
gerações futuras.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM – São Paulo, 20 de julho de 2020
www.miguelimigrante.blogspot.com
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