sábado, 5 de janeiro de 2019

António Vitorino denuncia forças políticas que “diabolizam” migrações

António Vitorino denuncia forças políticas que “diabolizam” migrações
Há poucos meses no cargo, desde outubro de 2018, o antigo ministro português e ex-comissário europeu chegou à Organização Internacional das Migrações (OIM) numa altura paradigmática para as migrações em que, segundo o próprio António Vitorino, é necessário trazer “racionalidade” ao debate político sobre o tema. 

Ainda esta quinta-feira, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) divulgou os novos dados da crise migratória no Mar Mediterrâneo: só em 2018 morreram mais de 2200 migrantes a tentar fazer a travessia entre a África e a Europa.  

Em entrevista à RTP esta quinta-feira, no mesmo dia em que o balanço da ONU foi divulgado, António Vitorino destaca que, ainda que os números de 2018 sejam inferiores aos de 2017 - ano em que morreram mais de 3100 pessoas no Mediterrâneo - a proporcionalidade dos números recentes é mais preocupante, tendo em conta o total de chegadas.  

“Proporcionalmente, o número não é menor. No ano passado houve 180 mil chegadas, este ano houve 130 mil. (…) Podemos dizer que há mais mortos em relação ao número de tentativas de travessia”, realçou o responsável nesta entrevista à RTP, conduzida pela jornalista Maria Nobre.  

Para António Vitorino, os controlos junto dos locais de partida dos migrantes “são mais eficazes” e existe um melhor funcionamento da guarda costeira Líbia, que tem permitido dissuadir mais pessoas de seguirem “uma jornada quase suicida”.  

“Mas infelizmente ainda há muitas pessoas que arriscam a própria vida. Isto prova que é absolutamente necessário ter uma ação mais decisiva”, assumiu o diretor-geral da OIM.  

António Vitorino sublinha que a situação deve ser alterada, não só pelo risco de vida subjacente a esta travessia, mas também pelos problemas que os migrantes poderão encontrar à chegada, lembrando, sem mencionar casos específicos, que há um “conjunto de países” na Europa que não tem aceitado a entrada de migrantes no seu território.   

Veja aqui a entrevista completa a António Vitorino.
“Não há uma solução mágica”

Ainda sobre o caso específico da Europa, António Vitorino assinalou que os fluxos migratórios têm sido “muito flexíveis” desde 2015, o ano de migração mais intensa através do Mediterrâneo. Numa primeira fase, a via de entrada preferencial passava pelas ilhas gregas e pela Turquia, com refugiados oriundos da Síria.

“O acordo entra a União Europeia e a Turquia permitiu reduzir significativamente essas entradas”, sublinhou o responsável, numa referência ao entendimento selado entre Bruxelas e Ancara em março de 2016.  

Vitorino destaca que, a partir de 2017, a migração ocorreu predominantemente através do Mediterrâneo central, com a entrada desde a Líbia e a Tunísia até Itália. Mas os últimos meses viram crescer os números de chegada através da Europa Ocidental, entre a costa marroquina e Espanha, oriundos sobretudo da África subsariana. 

O responsável da OIM refere ainda que, nos últimos anos, foram alcançados “progressos significativos” entre as várias organizações internacionais que lidam com a questão, o que tem permitido “criar condições de estabilização em algumas zonas de África Ocidental, da zona do Sahel ou África Subsariana”. 

Mas reconhece que “não há uma solução mágica para estas situações. Os fluxos são muito flexíveis e é preciso responder a esta pressão em cada momento”, sendo que “também não é possível explicar às pessoas que não devem arriscar se não forem criadas condições para que fiquem nos países de origem”, aponta o diretor-geral da OIM, uma organização criada nos anos 50 do século XX para fazer face aos movimentos migratórios após a II Guerra Mundial.  

António Vitorino aponta para a importância de implementar políticas de desenvolvimento nos países de origem, nomeadamente no que diz respeito ao emprego. “A maioria dos migrantes é jovem, com menos de 30 anos. Se emigram é porque não encontram oportunidades de constituir família, de encontrar um emprego, de se estabelecerem”, assinala o responsável.  

“O aumento da população que terá idade para entrar no mercado de trabalho não terá correspondência no número de postos de trabalho que são criados. A política de desenvolvimento pode ajudar, mas não produz retornos a curto prazo”, avisa António Vitorino.  

Para além do emprego, a paz, a segurança, o respeito pelo Estado de Direito democrático e a boa governança são outros fatores decisivos, acrescenta ainda o diretor-geral da OIM.  
Falta de água, a “questão central do século XXI”

Para o recém-empossado líder da Organização Internacional das Migrações, as alterações climáticas constituem um dos principais desafios atuais em termos de movimentações migratórias.  

“As alterações climáticas vão ser cada vez mais uma causa de mobilidade das pessoas”, vaticina o responsável.

António Vitorino diz que já há várias crises motivadas por esses fatores, nomeadamente ao nível da água na África Central: “A falta de água vai ser a questão central do século XXI. (…) As pessoas têm de abandonar os campos e vêm para as cidades, mas muitas vezes as cidades desses países não têm condições para as acolher. A partir do momento em que abandonam o seu local de origem, passam a atravessar fronteiras e tornam-se massas migratórias internacionais”, refere.   

Sobre a Síria, depois de vários anos de intensa emigração, provocada pela devastadora guerra civil que decorre naquele país desde 2011, o responsável máximo pela OIM já antecipa os problemas e os desafios de um retorno em massa para aquele país.  

“A prazo, a Síria vai ter de encontrar uma solução política de estabilidade. O país vai ter de ser reconstruído. (…) A reconstrução da Síria vai precisar daqueles que fugiram da guerra, mas que têm a legitima esperança de regressar. A prazo, tudo depende da estabilização política, mas uma vez conseguida essa solução, será necessário verificar se aqueles que querem retornar não correm riscos com esse retorno” , alerta António Vitorino.  
“Trazer racionalidade ao debate político”

Eleito no final de junho de 2018, para presidir à organização, o responsável da OIM elogia o aparelho vasto que tem ao dispor. “Temos uma organização com 12 mil pessoas em 150 países com 470 delegações no mundo inteiro. É uma organização flexível e muito descentralizada, muito preparada para responder a situações de proximidade, muito próxima das pessoas e dos problemas”.  

António Vitorino dá o exemplo específico do Iémen, “talvez a maior crise humanitária neste momento”, onde, segundo aponta o responsável, há mais de 22 milhões de pessoas em risco de fome. Sozinha, a Organização Internacional para as Migrações garante meios alimentares a mais de quatro milhões de pessoas naquele país da Península Arábica, mergulhado num conflito desde 2015.

“Isto exige uma máquina, uma estrutura e uma capacidade logística que só é possível havendo países contribuintes”, aponta. E, pelo menos no caso do Iémen, António Vitorino diz que tem havido “contribuições mais que suficientes” para a OIM, destacando desde logo a União Europeia, os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão.  

Para além das grandes crises globais de migração em curso, passando pela questão na América Latina e a fuga dos Rohingya para o Bangladesh, o primeiro trimestre como responsável desta organização internacional sediada em Genebra ficou marcado pela adoção do Pacto Global sobre as Migrações, em dezembro último.   

Sobre o principal desafio que enfrenta no mandato agora iniciado, António Vitorino destaca a necessidade de introduzir “um pouco de racionalidade no debate político sobre as migrações”, que considera estar “prisioneiro de uma grande polarização”.  

O responsável destaca que há uma “tensão” entre os que “diabolizam as migrações” e outros, que “tendem a esconder ou ignorar as reais dificuldades que os fluxos migratórios colocam para os países de origem, para os países de destino, e sobretudo para os próprios migrantes”.  

Nesta entrevista à televisão pública, António Vitorino define como objetivo a definição de “uma narrativa equilibrada que tenha em linha de conta os direitos fundamentais dos migrantes, mas que ao mesmo tempo compreenda também a resistência das comunidades de acolhimento e tente encontrar as pontes de entendimento entre estas duas posições”.  

“Acho que algumas forças políticas pretendem utilizar as migrações, instrumentalizando-as como o bode expiatório fácil para um conjunto de males sociais que existem nas sociedades desenvolvidas e que vão muito para além da específica questão das migrações”, assinala o responsável.

António Vitorino espera “coragem” dos responsáveis políticos para “assumirem o seu papel, o seu protagonismo e as suas responsabilidades”, na defesa de uma “visão equilibrada das migrações, que não esconda as dificuldades, mas que reconheça também os aspetos positivos dos movimentos migratórios, e que explique que é possível ter sociedades coesas, respeitando as diversidades”, conclui.  

Rtp Noticias 

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