O crescimento do número de pedidos de refúgio de venezuelanos e cubanos ao governo brasileiro, apontado no relatório apresentado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) no último dia 20, chama a atenção pelo ineditismo do fato, já que os países não têm histórico desse tipo de solicitação de forma massiva ao Brasil. Para entender o fenômeno, o Brasil de Fato consultou diversos especialistas em imigração, que apontaram questões econômicas, o restabelecimento das relações Cuba-EUA e até motivações de desestabilização política como fatores por trás do aumento.
O caso dos venezuelanos explicita bem essa novidade. Em 2011, por exemplo, apenas quatro haviam feito o pedido ao governo brasileiro. Este ano, até o mês de maio, foram registradas 3.971 solicitações. O que explicaria essa nova situação, no entendimento dos especialistas que conversaram com a reportagem, é que pedir refúgio é, provavelmente, a solução encontrada por imigrantes em situação de vulnerabilidade econômica para se regularizar no território brasileiro, por meio de um processo menos burocrático e mais barato do que a imigração.
É o que diz o chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania do Ministério da Justiça, Bernardo Laferté: "A gente foi ao local, em Roraima, e ouvimos de vários venezuelanos que, [eles] de fato, nunca sofreram perseguição, mas não têm como se manter lá por falta de emprego, por não conseguir se sustentar".
O professor do departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Sidney Antônio da Silva esteve, em fevereiro deste ano, na cidade de Pacaraima, em Roraima, e também acompanhou a situação no local. Ele coordena o Grupo de Estudos Migratórios na Amazônia (Gema) desde 2007 e constatou, em sua pesquisa de campo no município limítrofe com a Venezuela, que a opção escolhida por famílias do país vizinho tem relação, justamente, com um processo mais fácil e menos oneroso que se enfrenta ao pedir refúgio.
Isso porque o governo brasileiro tem a obrigação de aceitar o pedido de qualquer cidadão que faça esse tipo de solicitação em um dos postos da Polícia Federal.
Outro ponto a ser considerado no debate é o ponto levantado pelo professor equatoriano Jacques Ramírez, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) - Sede Ecuador. Ele ressalta que há casos em que um grupo minoritário pede refúgio com intuito de se opor ideologicamente aos governos de seus países e afirmar, nos casos específicos, que tanto a ilha socialista quanto a Venezuela vivem regimes ditatoriais. Ele observa que a análise de um pedido de refúgio, no entanto, deve ser isenta e se ater aos fatos das denúncias de supostas perseguições e, quando comprovadas, o país deve conceder a proteção independente da posição política dos solicitantes.
Os pedidos de refúgio no Brasil, que são gratuitos, são analisados em um prazo de até um ano pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), comissão interministerial sob o âmbito do Ministério da Justiça (MJ). Até o início do ano, os venezuelanos, para imigrar legalmente para o Brasil, tinham que pagar três taxas para a Polícia Federal que, juntas, chegavam a R$ 470 — valor muito alto, pontua Silva, para famílias empobrecidas.
Com o protocolo provisório gerado pelo procedimento, o estrangeiro fica amparado pelas leis nacionais e internacionais e é possível, por exemplo, requerer a carteira de trabalho no Brasil e, com ela, exercer atividades remuneradas no país. Neste período, o solicitante não pode ser deportado ou enviado de volta para sua nação de origem.
Migração econômica
Silva caracteriza o perfil dos venezuelanos que chegam ao país por Roraima como de jovens trabalhadores, entre 20 e 40 anos, com qualificação em áreas técnicas e do comércio. Além dos quase quatro mil cidadãos que pediram status de refugiados, de acordo com o levantamento da agência Amazônia Real, com base em dados da Polícia Federal em Roraima e do governo do Amazonas, entraram legalmente pela fronteira do extremo norte do país, de janeiro a maio deste ano, 22.165 venezuelanos.
O professor pontua também que a maioria faz a solicitação com base no contexto de crise econômica vivenciada pelo país vizinho, ocasionada pelo processo de desestabilização do governo de Nicolás Maduro — embora existam também, entre os pedidos, alegações de perseguição política.
"Em geral, eles se enquadram neste perfil laboral. E o que os motiva a vir ao Brasil é a crise política e econômica no país onde eles residem. Então, o Brasil passa a ser essa possibilidade que eles têm de buscar uma saída para esse momento de crise", explicou.
Migrantes ou refugiados?
De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, refúgio é uma medida de caráter humanitário. O mecanismo prevê proteção internacional ao imigrante cujo deslocamento foi forçado por ser apátrida (condição de um indivíduo que não é considerado como um nacional por nenhum Estado); ou por perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. A Convenção deve ser aplicada sem discriminação por raça, religião, sexo ou país de origem.
Sobre o assunto, o Brasil, além do Estatuto dos Refugiados de 1951, delimita a condição jurídica do refugiado e os procedimentos para a concessão da medida com a Lei 9474 de 1997. A legislação é considerada avançada e expande a concessão de refúgio também aos solicitantes que sofrem "graves violações de direitos humanos". Ainda assim, a lei não abarca imigrantes econômicos com o status de refugiados.
Dessa forma, entre os entendimentos possíveis com relação à situação dos venezuelanos, é muito difícil que o Brasil os enquadre, enquanto grupo, na categoria de refugiados, como explica o professor do departamento de Direito Público da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Pietro Alarcón: "No caso dos migrantes venezuelanos, a não ser que se trate de perseguição identificada e individualizada, não me parece que o fluxo migratório possa ser enquadrado nas hipóteses de refúgio determinadas pela Lei 9474 de 1997".
Para Alarcón, há muito desconhecimento, falta de informação e de orientação em torno da figura do refúgio. Ele ressalta que todo migrante, seja por razões econômicas ou outros motivos, deve ser protegido pelo Estado que o recebe. "Reitero que esses migrantes, seja os que solicitam ou não solicitam refúgio, passam a ser protegidos pela Constituição brasileira, especialmente nos seus direitos individuais e sociais", observa.
Mas há outra interpretação possível, como ressalta Silva. Ele esclarece que, se o Conare entender o contexto político e econômico do país vizinho como uma violação de direitos humanos, então caberia a figura do refúgio: "A falta de segurança alimentar e saúde e o cenário de violência podem ser consideradas violações, se existir uma visão mais ampla da crise social no país", explica.
O posicionamento do Brasil nesses casos, no entanto, é mais restrito para a concessão de refúgios, como ressalta o Alarcón. Ele lembra que, no caso dos haitianos que vieram em massa para o país em 2015, a alternativa encontrada foi a concessão do visto humanitário diante da tragédia que se abateu sobre o país caribenho.
Para ele, não há como desvincular as questões: "A caracterização da situação política não emana do Conare, mas do governo, da avaliação que o Brasil faz do entorno e dos conflitos que atualmente há no planeta", analisa o professor da PUC-SP.
E o que diz o governo brasileiro?
Bernardo Laferté, da Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania, explica que o governo tem enquadrado o caso venezuelano como um fluxo misto — em que há tanto casos de migração econômica, como de pessoas que podem receber o status de refúgio.
Ele informou que o governo ainda não tem como mensurar a proporção entre os que saem da Venezuela em busca de melhoria econômica e os que se enquadrariam em violações dos direitos humanos ou perseguições políticas, como previsto nas convenções internacionais.
Ele aposta que o cenário deve ficar menos nebuloso por causa da aprovação da resolução do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), no início de março deste ano, que permite concessão de residência temporária para migrantes que entrarem no Brasil por via terrestre e que sejam naturais de países fronteiriços.
Com a nova regra, cidadãos de Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa terão os mesmos direitos vigentes pelo Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e associados, como Bolívia e Chile. A medida prevê que cidadãos desses países podem entrar com visto de turista e, após três meses, podem solicitar a residência temporária de dois anos. O visto é concedido automaticamente, desde que os solicitantes não tenham antecedentes criminais.
Outra legislação que também foi comemorada pelos especialistas foi a aprovação da nova Lei de Migração. Com ela, a acolhida humanitária passa a ser um princípio da política migratória brasileira.
E os cubanos?
Os cubanos apresentam características migratórias diferentes dos venezuelanos, como explica o Jacques Ramírez, que já deu consultoria sobre migração para a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Ele relaciona o aumento dos pedidos de refúgio com o restabelecimento das relações bilaterais entre os EUA e a ilha socialista.
A reaproximação entre os países teve como consequência o cancelamento da chamada política dos "Pés Secos, Pés Molhados", que facilitava a imigração para os cubanos que pisavam em solo estadunidense e foi revogada no último dia de governo do ex-presidente Barack Obama ( 2009 - 2017).
Ramírez analisa que os países latino-americanos, como Brasil e Equador, se tornaram uma parada em direção ao real destino que seria os Estados Unidos. "Sabemos que os imigrantes, em geral, usam estratégias para chegar a seu destino. Em casos como esse, não é fácil chegar ao país desejado e, por isso, eles têm que estabelecer estratégias de trabalho, utilizar países-trampolim. Pedir refúgio é uma estratégia temporal para chegar ao seu destino principal", explica.
Edição: Vanessa Martina Silva
Brasil de Fato
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