quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Imigração no RS: a luta por direitos de quem teve que deixar sua terra

 EMILY VIEIRA, FLÁVIA SIMÕES E VICTÓRIA RODRIGUE

Comércio informal nas ruas de Porto Alegre é uma das alternativas de renda. Foto: Flávia Simões/Humanista

“Sabíamos que tínhamos que avançar”, relata Moreidy Valera, ao contar porque deixou a Venezuela, em 2018. A crise econômica e institucional do país fez com que ela e centenas de jovens deixassem o país em busca de melhores oportunidades. À época com uma filha pequena, Moreidy passou dois meses na rua, na companhia de outros migrantes. Depois, ainda em Roraima, já no Brasil, ficou mais dois anos em um abrigo, até conseguir ajuda da ONU Migrações, quando chegou ao Rio Grande do Sul para morar com um amigo que já estava estabelecido.

A história da venezuelana é uma entre tantas com as quais o Humanista se deparou ao apurar a situação atuação da imigração no país. Assunto recorrente no portal, que, entre outras iniciativas, no final de 2019 produziu o podcast Migração Humanista, voltado para imigrantes e pessoas em situação de refúgio, com a explicação sobre seus direitos e como acessá-los. Dessa vez, o tema é abordado em reportagem produzida originalmente na disciplina Ciberjornalismo III do curso de Jornalismo da Fabico/UFRGS, publicada nesta terça-feira (15) na seção Fabico + Humanista.

Desde que chegou ao Brasil, Moreidy Valera nunca conseguiu trabalhar de carteira assinada. Antes, pela dificuldade em conseguir a documentação, depois, em função da pandemia e, agora, porque finalmente conseguiu adquirir um pouco de autonomia financeira: abriu a sua loja online, Laços da Amore, onde vende os laços e tiaras infantis que confecciona.

Moreidy é uma das centenas de imigrantes que chegaram e continuam chegando diariamente no Rio Grande do Sul em busca de emprego e renda. Só em 2020, 2.605 mil imigrantes entraram no Brasil, relatam os dados divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. No Estado, o último levantamento do MigraCidades, indica que  o RS recebeu cerca de 8.141 mil imigrantes. O número, contudo, é bem aquém do que o real estimado.

 

Conforme dados da secretaria estadual de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG), a maior parte dos estrangeiros que chegaram em solo gaúcho desde 2018 partiram do Haiti, Uruguai e Venezuela. Porto Alegre e cidades da Região Metropolitana, como Canoas, são os principais destinos, além dos municípios da Serra, como Caxias do Sul e Bento Gonçalves. O estudo é baseado em três fontes de dados: o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e o Cadastro Único (CAD).

As leis trabalhistas são um dos vários fatores que colocam o Brasil na rota de centenas de migrantes, mesmo com o desemprego batendo os 11,2%. A tendência, porém, é que esse fluxo sofra alterações nas nacionalidades. Além disso, o país também deverá continuar sendo destino para os inúmeros refugiados de países em conflito, como a República Democrática do Congo e Angola.

Quem são, de onde vem

Assim como a venezuelana Moreidy Valera, uma série de outros imigrantes que residem no Estado também não trabalham com carteira assinada. Isso acontece, entre uma série de outros motivos, porque as migrações têm causas e objetivos diferentes. Como a jovem, os imigrantes que saíram da Venezuela, deixaram o país em função da crise econômica e foram em busca de renda. Apesar de boa parte dos migrantes também acompanharem sua faixa etária, é comum que famílias inteiras migrem juntas ou venham depois, como foi o caso da mãe de Moreidy, Morella Moreno, que há uns meses chegou no Estado, acompanhada dos seus outros dois filhos, para encontrar a filha mais velha.

 

Moreidy Valera com a filha e a mãe, Morella Moreno. Foto: Flávia Simões/Humanista

Com o visto humanitário – que permite ao migrante trabalhar – os venezuelanos chegam através da Operação Acolhida, projeto do Exército Brasileiro que tem como objetivo interiorização e a inserção laboral. Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre, foi a primeira cidade do país a acolher venezuelanos do projeto. No entanto, o professor Fabian Domingues analisa que, em função dos últimos desdobramentos políticos, é possível que a Venezuela volte a crescer economicamente no próximo ano e, com isso, uma série de venezuelanos retornem ao seu país.

Mas foram os haitianos, há mais de dez anos, que deram início a essa migração em massa para o Brasil. Em função dos sucessivos desastres naturais e um cenário político instável, a população migra em busca de novas oportunidades. Em busca de trabalho com carteira assinada, eles correspondem pela maior parcela dos trabalhadores formais entre os migrantes. “Em 2014 e 2015, uma série de empresários gaúchos fretaram um ônibus e o mandaram para Letícia, na Amazônia, para receber de braços abertos os haitianos para trabalhar no frigorífico. Porque o trabalho de frigorífico é um trabalho insalubre, você trabalha em pé, 8 horas por dia, em uma área fria, e ninguém quer fazer esse tipo de trabalho”, conta o professor.

Após anos de migrações dessa população, Anderson Hammes, diretor do Cibai Migrações, percebe algumas mudanças, mas o mesmo objetivo. Agora, ao invés dos homens sozinhos, é normal que a família também venha junto ou acabe vindo depois.

“A migração haitiana, muitas vezes, foi um projeto de uma família inteira de enviar aquela pessoa que está justamente em idade laboral, que as vezes já é formada, mas que é uma pessoa jovem que vai conseguir chegar no Brasil e buscar se inserir no mercado de trabalho para tentar se estabelecer aqui e enviar remessas de dinheiro para o país de origem ou, eventualmente, até conseguir trazer outros familiares para residirem aqui hoje”, afirma Bibiana, presidente do COMIRAT. 

Em contraponto, a migração senegalesa pouco tende a trabalhar como celetista. Facilmente encontrados expondo os seus produtos nas ruas do centro da Capital, os senegaleses viajam através das rotas de comércio, saindo jovens de casa – geralmente já casados – e retornando perto dos 30 anos. Por meio das associações – criadas por eles mesmos – se ajudam. Tendem, em função do perfil temporário de migração, a não usufruir de políticas públicas, como o SUS.

Documento e respeito: direitos mais difíceis

A pandemia de Covid-19, iniciada em 2020, agravou um sistema que já apresentava falhas: o registro das dezenas de imigrantes que chegam no Estado diariamente. A presidente do Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas do Estado do Rio Grande do Sul (COMIRAT-RS), Bibiana Waquil Campana, explica que os fatores que já dificultavam o monitoramento dessas chegadas, como o tamanho continental do Brasil, foram agravados durante a pandemia. “As pessoas precisaram continuar entrando. Comunidades haitianas, inclusive, organizaram voos junto às companhias aéreas brasileiras para trazer grupos de mais de 100 haitianos, porque esse é um fluxo que acontece independente do contexto da pandemia”, conta.

Com as fronteiras terrestres fechadas por determinação do Palácio do Planalto, os pontos de triagem da Polícia Federal ficaram inacessíveis e centenas de imigrantes que entraram no país durante esse período não puderam emitir o Registro Nacional Migratório, vivendo atualmente de forma irregular no país.  É esse, somado às barreiras da língua, o principal entrave para que essa população entre no mercado de trabalho.

Fabian Domingues, professor adjunto de Economia e o coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Migrações da Ufrgs (NEPEMIGRA), explica que o acesso a documentação, em especial para a população migrante dos países africanos, pode ser complexa, em função da barreira linguística, e é certamente cara. Ele conta que apesar da existência de uma resolução que prevê a isenção de pagamento para aqueles que comprovarem carência, nem sempre a Polícia Federal acata a determinação, resultando, diversas vezes, em intervenções da Defensoria Pública do Estado. Os trâmites para retirada de documentos ou comprovantes acadêmicos – para que o migrante possa atuar no Brasil conforme sua área de formação – é ainda mais trabalhoso e possui um valor ainda mais alto.

Soma-se a isso a falta de preparo do governo no recebimento do fluxo de imigrantes que já provocava, antes mesmo da pandemia, certa lentidão na emissão da documentação, conta Anderson Hammes, diretor do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações). A instituição, que tem o foco na integração sócio-laboral, também presta ajuda na emissão da documentação para os migrantes ainda irregulares ou recém chegados. Conforme Hammes, atualmente, há cerca de três mil pessoas no Rio Grande do Sul esperando para regularizar sua situação.

Enfrentado os problemas com a documentação, essa população se depara com outra difícil barreira: o preconceito. Da cor da pele até a língua que fala, tudo soma para que as empresas rejeitem a ideia de contratar estrangeiros. Alegando, depois, “falta de informação” acerca dos trâmites. Para Hammes, ainda é preciso caminhar em um processo de mudança de mentalidade do brasileiro, que rejeita a ideia de contratar um migrante em função de uma série de fatores, mas não entende que “para o Brasil se desenvolver economicamente, ele precisa dos migrantes”.

O imigrante e o mercado de trabalho 

No Brasil desde 2015, Samuel Celant faz parte dos 10,9 mil estrangeiros admitidos no mercado de trabalho, entre 2015 e 2019, no Estado. Atualmente trabalhando em uma mecânica, ele conta que não foi difícil encontrar o seu primeiro emprego, como assistente de logística, há anos atrás. Natural do Haiti, veio para o Rio Grande do Sul aos 17 anos, para visitar, e acabou ficando. “Eu gostei muito do país, eu curti a cultura e resolvi ficar”, conta. Nos sete anos que reside no Brasil, o haitiano afirma que se sente muito feliz e que já construiu uma rede de amigos aqui.

Apesar dos haitianos comporem a maior parcela de imigrantes assalariados, a sua remuneração não é a maior, pelo contrário. Conforme o levantamento feito em 2019 pelo RAIS, os trabalhadores naturais da América do Sul e Central recebem de dois a três salários mínimos, ficando à frente apenas dos africanos, cuja remuneração é de 1,5 a dois salários mínimos. Enquanto isso, aqueles naturais da América do Norte e Europa concentram a maior remuneração: de cinco a dez salários mínimos.

O documento elaborado pela secretaria de Planejamento aponta que os imigrantes inseridos no mercado formal de trabalho possuem, geralmente, escolaridade mais baixa, principalmente se  comparada à dos empregados do Rio Grande do Sul como um todo. A causa pode estar relacionada com as dificuldades de validação de diplomas e expectativas salariais, por exemplo. O material ainda aborda um estudo realizado com os dados da RAIS para o país, que mostrou que pessoas de cor preta, mulheres, imigrantes de países africanos, além de boa parte dos latino-americanos, estão mais representados entre as ocupações menos qualificadas.

Apesar desse cenário, o diretor do Cibai, Anderson Hammes, conta que há, hoje, imigrantes bem posicionados no mercado de trabalho e até inseridos em bons cargos em multinacionais. “Porque dificilmente você encontra um brasileiro que fala inglês, francês, espanhol e português. A grande maioria dos imigrantes tem até cinco idiomas”, explica. A instituição trabalha desde 1958 na inserção sócio-laboral dessa população, prestando auxílio do momento em que eles chegam – com comida, moradia, vestimenta – até a entrada e o acompanhamento nos empregos.

As informações sobre o trabalho prestado pelo Cibai são passadas de “boca em boca”, de um migrante para o outro, que têm o local como referência. Só em 2021, foram 13 mil estrangeiros atendidos, de 48 nacionalidades diferentes. Sem nenhum auxílio financeiro do Estado e contando apenas com doações de pessoas físicas e jurídicas, todos os serviços oferecidos pelo Cibai são gratuitos. 

Foi através desses cursos que Moreidy abriu a Laços da Amore. Primeiro, fez uma oficina de artesanato, e, depois, entrou no programa de incentivo ao microempreendedorismo. Hoje, a venezuelana pretende expandir seu leque de atuações, mas é muito grata pela instituição. Ela conta que quando mais jovem, nunca lhe passou a ideia de que poderia trabalhar por conta própria.  

O papel do estado

De acordo com a Constituição Federal, é dever do Estado garantir o acesso aos direitos fundamentais aos imigrantes que chegam ao país, principalmente daqueles em situação de refúgio. No entanto, segundo Fabian Domingues, na maioria das vezes, não é isso que acontece. Um dos motivos é a incipiência da governança migratória, política pública responsável por tratar dessa questão no país. “Ela existe em poucos lugares e não está de forma articulada, depende muito que imigrantes de nacionalidades representativas assumam algum posto em geral de técnico, de nível médio, para poder fazer uma intermediação”, declara.

No Rio Grande do Sul, alguns municípios já oferecem uma assistência mais humanizada para estrangeiros. De acordo com Bibiana, Esteio e Caxias do Sul já possuem um centro de referência para promover um melhor acolhimento para essa população. Contudo, a Capital ainda não dispõe de nenhum espaço estruturado nesse sentido. “Porto Alegre já vem há uns cinco, sete anos nessa discussão sobre a instituição de um centro de referência”, afirma. Bibiana conta ainda que, em 2021, chegou a ser aberto esse centro por meio de recurso de um edital do Ministério da Justiça, mas funcionou por apenas três meses. “Até que os servidores levaram a público que não estavam recebendo nenhum repasse de pagamento de salários”, revela. Por esse motivo, o espaço foi fechado temporariamente até que todos os trabalhadores fossem devidamente pagos.

Segundo a presidente do COMIRAT, existe um forte debate sobre ser uma atribuição municipal a criação desses lugares, porém, uma das principais funções do comitê e do governo estadual é justamente pensar junto aos municípios a promoção de um melhor atendimento e recolhimento dessas populações. “Eu entendo, por exemplo, que a instituição de um centro de referência para a população imigrante é uma atribuição do município que deveria estar alinhada a política de assistência social”, pondera.

Além disso, ainda há discussões sobre não haver a necessidade da implementação desses espaços, em razão dos imigrantes terem direito ao acesso às políticas sociais, em condições de igualdade com os brasileiros. Contudo, Bibiana defende que esses povos são atravessados por diferentes questões que os diferencia de outros indivíduos usuários desses serviços. “A população em situação de rua, por exemplo, acaba precisando de um espaço de atendimento específico por ter outras particularidades”, exemplifica. Essas especificidades também acontecem com os imigrantes. Além da questão do idioma, existe uma série de elementos culturais que os diferenciam dos brasileiros e que, segundo o professor Fabian Domingues, não são inseridas em políticas ativas na área de imigração.

OMISSÃO “Uma pessoa que tem educação jamais irá discriminar a outra”, garantiu Januário Gonçalves,  presidente da Associação dos Imigrantes Angolanos. A afirmação foi feita durante audiência pública, na Assembleia Legislativa, que discutia as condições de trabalho dos imigrantes e o racismo enfrentado por eles. Entre as outras denúncias, Bamba Touré, representante da Associação dos Senegaleses, relatou casos de trabalho escravo e situações em que os imigrantes foram enganados.

“Outra coisa que acontece muito na Capital é fazerem contrato com os imigrantes que não sabem ler. Contrato de aluguel. Tem muitos imigrantes que querem sair (do seu país de origem) para abrir seu próprio negócio, ter comércio. Eles (os contratantes) dizem que venderam (os imóveis), mas alugaram. Ai, quando o senegales arruma sua loja, fica bem bonita, eles tomam a loja”, contou Bamba Touré durante o encontro.

Os relatos são uma pequena parte das inúmeras dificuldades encontradas pela população estrangeira que busca abrigo no país. Assim como com os brasileiros, também é comum que os percalços para aquelas cuja a pele é escura sejam inflados, ainda mais em um país estruturalmente racista como o Brasil. “A raça é um elemento determinante nos processos de integração, de inserção social, de acess

Apesar de possuírem os mesmos direitos dos brasileiros, é comum que não consigam acesso às políticas públicas, como programas assistenciais ou o SUS. Ou, ainda, que sejam subjugados e não consigam alcançar empregos que correspondam com a sua formação acadêmica. “Baixo salários, emprego precário, violência de trabalho, trabalho insalubre. Tudo isso são coisas que deveriam ter mais atenção de políticas públicas”, denuncia Fabian Dom

*Reportagem originalmente produzida na disciplina de Ciberjornalismo II do curso de Jornalismo da Fabico/UFRGS no semestre letivo 2021/2, sob a orientação do professor Marcelo Träsel. Edição: redação Humanista, 2022/1.

ufrgs.br/humanista/


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