AFP
Quarenta e sete crianças brasileiras já foram deportadas pelos Estados Unidos para o Haiti em meio à grave crise de migração que levou cerca de 15 mil haitianos à cidade texana de Del Rio, na fronteira com o México, nos últimos dias. A informação foi dada à BBC News Brasil pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicada ao monitoramento do fluxo migratório ao redor do mundo.
As crianças brasileiras têm, em sua maioria, até três anos de idade e estavam acompanhadas pelos pais haitianos, com quem fizeram a jornada para sair do Brasil e atravessar as Américas do Sul e Central até chegar à divisa entre México e Estados Unidos há algumas semanas.
Desde que a crise estourou, 50 voos americanos já transportaram ao Haiti mais de 5,4 mil pessoas - 23% eram bebês, crianças e adolescentes. Ao descobrir para onde tinham sido levados, alguns haitianos reagiram com indignação e revolta e tentaram voltar à aeronave dos EUA. Além dos 47 menores de idade brasileiros deportados, 259 crianças chilenas, cinco venezuelanas, duas equatorianas e uma panamenha estão na mesma condição.
"As crianças brasileiras não apresentavam qualquer problema maior, caso contrário, seriam encaminhadas para assistência específica", afirmou à BBC News Brasil Giuseppe Loprete, chefe da missão da OIM em território haitiano, que acompanha a situação dos deportados. Segundo Loprete, por terem pais haitianos, as crianças são também consideradas haitianas segundo as leis do país caribenho, embora não tivessem documentos para comprovar essa nacionalidade.
"Eles podem obter documentos haitianos aqui, certidão de nascimento e carteira de identidade. As autoridades locais já informaram que irão facilitar isso. Mas enquanto eles estão fora do país, é difícil que consigam essa documentação", explicou Loprete.
De partida do Brasil
A partir de 2010, quando um terremoto devastou o Haiti e matou centenas de milhares de pessoas, o Brasil passou a ser destino de migração de haitianos. Entre 2010 e 2018, os dados da Polícia Federal apontam que em torno de 130 mil haitianos vieram ao Brasil, onde se estabeleceram e formaram família. O governo brasileiro criou um visto humanitário para atender às necessidades desses migrantes - mais tarde também estendido a sírios e afegãos.
Nos últimos anos, porém, a recessão brasileira e a desvalorização do câmbio, que achatou a renda remetida pelos haitianos aos familiares no país de origem, levaram muitos a migrarem para o Chile ou outros países da região.
No ano passado, em um novo capítulo nessa jornada migratória, muitos grupos passaram a se destinar aos EUA, onde tentavam chegar atravessando mais de uma dezena de países a pé. Em março, a BBC News Brasil mostrou que o fluxo já se formava e vitimava pessoas como a haitiana Manite Dorlean, que, grávida de gêmeos, morreu afogada nas águas do Rio Grande em janeiro de 2021 depois de partir do Brasil ainda em 2019.
Esse ano, com dados ainda incompletos, o número de haitianos localizados por agentes americanos na fronteira (29,6 mil) já é 6,5 vezes maior do que o total de 2020.
"Eles dizem que foram instruídos por outros haitianos que já passaram para os Estados Unidos e por isso também foram pra lá. Infelizmente, é assim que funciona", afirmou Loprete.
Em 2021, o Haiti enfrentou o assassinato do presidente do país, Jovenel Moïse, que aprofundou a instabilidade política, e um novo e potente terremoto, que deixou mais de duas mil pessoas mortas. Nesse contexto, a diáspora haitiana, tanto do próprio país quanto de outros na América Latina, se moveu para os EUA. Contribuiu para o fluxo a percepção de que a nova gestão democrata, de Joe Biden, teria uma abordagem mais simpática a migrantes.
Crise política nos EUA
A chegada em massa de haitianos, no entanto, detonou uma crise política nos EUA depois que o governo Biden, que prometia uma abordagem "humana" aos migrantes, recorreu aos mesmos instrumentos utilizados pelo ex-presidente Donald Trump para deportar rapidamente o maior contingente possível, sem dar a eles a chance de pedir por asilo ou refúgio em território americano.
O enviado especial dos EUA para o Haiti, Daniel Foote, renunciou ao cargo em protesto contra o tratamento dispensado aos haitianos. Em uma carta pública à Casa Branca, ele disse que "não se associaria à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos", citando as sucessivas crises humanitárias no país caribenho.
Além disso, imagens de guardas de fronteira ameaçando avançar com cavalos sobre migrantes haitianos correram o mundo e alimentaram ainda mais críticas ao governo americano. Biden afirmou que se responsabilizava pessoalmente pelo ocorrido e determinou o fim do uso da cavalaria entre agentes de migração.
Em meio ao turbilhão, o secretário de Estado dos EUA Antony Blinken chegou a pedir ao chanceler brasileiro Carlos França, em reunião em Nova York, na semana passada, que o Brasil acolhesse parte dos haitianos que estavam na fronteira americana. O governo brasileiro, segundo um integrante do Itamaraty que esteve no encontro, recusou o pedido. "Cada um que cuide do seu Haiti", descreveu esse diplomata à reportagem, sobre o teor da resposta do Brasil aos americanos.
Segundo a lei brasileira, migrantes que tenham recebido visto humanitário e ainda assim tenham deixado o país, perdem o direito a requerer novamente esse status especial.
A embaixada brasileira em Porto Príncipe já foi avisada pela OIM sobre a presença de crianças brasileiras deportadas no país, mas por enquanto não foi diretamente contatada por suas famílias.
À CNN americana, o ministro de relações exteriores do Haiti, Claude Joseph, afirmou: "pedimos solidariedade na região. Falei com minha embaixadora no Brasil e ela disse que os brasileiros estão dispostos a aceitá-los de volta com suas famílias". A BBC tentou contato com a embaixada haitiana em Brasília nesta segunda (27/9), mas não localizou um porta-voz.
Por lei, o Brasil é obrigado a repatriar - inclusive cobrindo os custos de viagem - cidadãos que estejam em risco no exterior e sem recursos para chegar ao Brasil. Reservadamente, dada a sensibilidade do tema, um embaixador brasileiro afirmou à BBC News Brasil que se as famílias dessas 30 crianças brasileiras expressarem o desejo para que isso aconteça, poderão deixar o Haiti e retornar ao Brasil.
Em nota enviada à BBC News Brasil após a publicação da reportagem, o Itamaraty afirmou que "foi comunicado pela OIM sobre a existência de menores com passaporte brasileiro dentre milhares de haitianos que recentemente foram deportados de volta àquele país. A Embaixada do Brasil em Porto Príncipe está em contato com a OIM, com vistas a analisar a situação desses menores e de seus responsáveis legais, todos cidadãos haitianos, a fim de prestar-lhes a assistência cabível".
É possível que o número de menores brasileiros nessa situação aumente nos próximos dias, conforme mais aviões americanos com centenas de deportados aterrissem em Porto Príncipe e Cap Haitien.
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