Refugiados venezuelanos atendidos pela Cáritas em São Sebastião - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)
Todos os dias,
Serge Dossou, 32 anos, acorda às 4h e faz uma oração. Toma um café da manhã
reforçado e às 5h40 sai de casa para pedalar 36km, entre as cidades de Águas
Lindas de Goiás e Vicente Pires, na sua fiel companheira de estradas há três
anos, uma bicicleta montain bike com aro 29 GTA. O haitiano leva exatamente uma
hora e 26 minutos para fazer o trajeto de casa para o trabalho, uma oficina
mecânica chamada Land Tech. O trajeto completo é formado por 72km diários. A
travessia cotidiana é praticamente um prolongamento do caminho intercontinental
que Serge precisou fazer para se refugiar no Brasil. Primeiro, ele conseguiu
pegar um voo humanitário até o Equador. De lá, fez viagens de ônibus por mais
de 6.200km até chegar à capital federal.
A realidade de
Serge é parecida com a de outras 5 mil pessoas estrangeiras em situação de
vulnerabilidade, registradas no cadastro único no DF, de acordo com a Agência
da ONU para Refugiados (Acnur). O haitiano é uma delas. O refúgio,
diferentemente da migração voluntária, configura-se quando as pessoas são
forçadas a deixar suas casas, seja por desastres ambientais, seja por guerra ou
instabilidade política. A decisão de Serge em vir para o Brasil aconteceu
depois dos grandes terremotos que assolaram o país caribenho em 2010. "Meu
irmão veio primeiro e foi morar em Valparaíso de Goiás. Em 2014, eu consegui
chegar em Brasília", contou à reportagem do Correio, em um português com
ótima dicção, que ele assegurou ter aprendido apenas em conversas informais com
os colegas de trabalho.
Quando chegou à
capital, no entanto, o mecânico falava apenas o criolo haitiano, língua oficial
de seu país. Ele, que era agricultor na sua terra, resolveu fazer cursos de
ajudante de pedreiro, eletricista e mecânico para recomeçar a vida em um lugar
totalmente diferente. Apesar das dificuldades iniciais com a língua,
culturalmente ele assegurou que não teve problemas. "Não senti muita
mudança. Na alimentação, por exemplo, eu comia a mesma coisa que geralmente
como aqui no Brasil: arroz, feijão, verdura e carne, às vezes", contou, ao
explicar que ele mesmo faz as suas marmitas. No dia que conversou com o
Correio, havia cozinhado arroz, feijão, carne de soja e verduras. No tempo
livre, o mecânico prefere ficar em casa. "Gosto de estudar sobre religião
e assistir televisão", disse.
Assim que
pousou no Planalto Central, morou por alguns meses na casa do irmão. "Mas
ele tem a família dele e, atualmente, nós passamos quase um ano sem nos ver,
por conta das nossas rotinas de trabalho", explicou. A outra parte da
família de Serge ainda mora toda no Haiti. Com o salário, ele ajuda irmãs,
irmãos e a sua mãe idosa, de 78 anos. "Lá, nós não temos isso de
aposentadoria, como vocês têm aqui. Então, quando os pais envelhecem, é papel
dos filhos cuidar deles", contou. Os motivos para Serge continuar no
Brasil são melhores oportunidades de trabalho e condições de vida. Quando
perguntado sobre a saudade, ele riu e respondeu que não tem vontade de voltar e
tampouco de sair do Brasil, como fizeram alguns amigos que foram para os
Estados Unidos. "A mim, só me falta formar uma família, para tudo ficar
perfeito aqui".
As pessoas
haitianas e venezuelanas têm condições especiais para receberem a condição de
refúgio no Brasil. Para cidadãos do Haiti, basta apresentar documentação na
Polícia Federal para ter direito à residência em condições humanitárias. De
acordo com o escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), as violações sistemáticas de direitos e violência armada contínua no
país acarretaram uma crise humanitária e, por isso, milhões de haitianos se
veem forçados ao deslocamento para outros países.
Direitos
humanos
No caso dos
venezuelanos, os cidadãos não precisam de visto para entrar no Brasil. Desde
2019, há uma facilitação do processo para a condição de refugiado deles no
Brasil, porque o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu a
existência de violação de direitos humanos generalizada no país vizinho.
Jesus Moreno,
61, é venezuelano nascido no estado de Sucre. Chegou há três anos no país, em
meio a pandemia de covid-19. Quando decidiu vir para o Brasil, as fronteiras
estavam todas fechadas devido à crise sanitária, e ele ficou sete dias
esperando na fronteira, em Roraima. O filho dele, de 26 anos, foi o primeiro da
família a fazer a travessia. Apesar de apoiarem a escolha, Jesus e a
companheira decidiram continuar no país natal. "Até que a minha
companheira faleceu e eu me vi sozinho. Meu menino mora em Valparaíso de Goiás
e foi até a fronteira me buscar e ajudar com a documentação", contou.
Morador de Águas Lindas, o haitiano Serge Dossou pedala 72km todos os dias para ir e vir ao trabalho em Vicente Pires(foto: Caio Ramos/CB/D.A Press)
Naquela altura, apesar da simplificação para venezuelanos ingressarem no país, sob a condição de refugiados, Jesus optou pela documentação de imigrante residente, que demorou um mês para ficar pronta. Quando veio para Brasília, o venezuelano disse a familiares e amigos que ficaram no seu país que só passaria dois anos no Brasil. Hoje, depois de três anos, ele "não tem vontade de voltar. Mas em Brasília, só quero ficar até o fim do ano, porque pretendo ir morar no Piauí". Ele reencontrou o amor e pretende morar com a namorada em terras piauienses.
Jesus tem apenas 40% da visão no olho direito e nenhuma no esquerdo. A cegueira parcial veio de uma cirurgia mal-sucedida de catarata realizada na Venezuela. "Gostaria de tentar uma aposentadoria por incapacidade aqui no Brasil", explicou. Um dos maiores êxitos do Brasil para o venezuelano é o Sistema Único de Saúde (SUS), em que se consegue fazer cirurgias gratuitas. Ele está na fila de espera para um procedimento sobre hérnia de disco.
A dolarização da economia com consequente desvalorização dos bolívar, como é chamada a moeda local, e a falta de apoio estatal foram as maiores causas para Jesus deixar seu país natal — para além da pandemia, na época. Os mesmos problemas enfrentados por 150 indígenas venezuelanos da etnia warao, que cruzaram as fronteiras entre os dois países a pé, andando pelo meio da floresta.
Dificuldades
A travessia foi
feita em dois dias por um grupo de crianças, idosos, mulheres grávidas e homens
da população ribeirinha, que vive às margens do Rio Orinoco, o principal do
país vizinho. A maior bacia hidrográfica da América do Sul é chamada também de
Rio Winikila, na língua warao. O idioma está entre uma das maiores dificuldades
deste povo em diáspora, pois muitos sequer falam o castelhano, tendo como
língua materna o warao. Asunilio Warao é um dos caciques de seu povo. À
reportagem do Correio, ele contou que, apesar de terem entrado por Roraima, o
objetivo era mesmo chegar até a capital federal. Assim que chegaram em
Brasília, um grupo estava dormindo na rua em frente à Rodoviária do Plano
Piloto e foi encaminhado para um abrigo de imigrantes e refugiados da Cáritas
Arquidiocesana de Brasília, localizado em São Sebastião.
Atualmente, há três gerações de duas famílias warao em migração vivendo no local, a Zapara e Quijara, que juntas somam 150 pessoas. Asunilio veio com a companheira, Biuda Velasquez Zapata, fugindo da fome e da falta de acesso a alimentos, medicações e dinheiro. Biuda é artesã e produz bijuterias típicas de sua região, que são expostas e vendidas na Cáritas. O cacique também é artesão, mas faz bicos de ajudante de pedreiro sempre que é chamado. A maior fonte de sustento da família, no entanto, é proveniente da doação de cestas básicas. "Lá (na Venezuela), estava faltando dinheiro. A comida está muito cara", contou.
Aqui, em Brasília, a alimentação está baseada em frango, arroz e feijão, uma dieta diferente da que estão acostumados. Os warao que seguem na Venezuela vivem da pesca e de uma pequena agricultura familiar, onde cultivam tubérculos, como inhame e mandioca para consumo próprio. Contavam com o recebimento de cestas básicas para complementar a alimentação. "Antes de você chegar para esta entrevista, eu estava falando com meu pai (na Venezuela). Ele disse que não tem comida nem dinheiro. Me pediu ajuda e eu infelizmente não tenho como mandar nada", disse à reportagem.
Luiz José
Zapata veio com Biuda e Asunilio — trouxe seus quatro filhos. Ele trabalha como
ajudante de pedreiro e outros bicos. No momento, está participando do Renova,
programa da Secretaria de Estado de Trabalho do Distrito Federal do GDF, que
oferece cursos de qualificação profissional, como auxiliar de manutenção, que
engloba as profissões de carpinteiro, jardineiro, eletricista, encanador,
serralheiro e pedreiro.
Biuda Velasquez mostra seu trabalho de artesanato(foto: Ed Alves/CB/DA.Press)
Acessos
As populações indígenas conseguem com mais facilidade a condição de refúgio, por chegarem em grupos e serem mais visível a necessidade da condição de refugiados no Brasil, como explicou o diretor de migrantes da Cáritas em Brasília, Paulo Henrique de Morais. "Aqui, na instituição, nós auxiliamos imigrantes e refugiados com os protocolos. A renovação de refúgio precisa ser feita entre seis meses e três anos, por exemplo", pontuou. Além disso, a Cáritas também acolhe refugiados facilitando os acessos às unidades de saúde, de educação e de trabalho. E também promove oficinas de trabalho e renda no ramo de artesanato.
Para Maria Eliana Barona, representante adjunta da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) no Brasil "é na construção de políticas públicas sustentáveis que reside nossa capacidade de promover uma mudança duradoura (na questão dos refugiados). Vemos como essencial o desenvolvimento de políticas públicas em todos os níveis federativos — políticas que garantam, também localmente, o maior acesso a direitos e oportunidades às pessoas refugiadas, migrantes e apátridas", afirmou.
A Secretaria de
Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF) trata da questão
migratória de maneira transversal. Quando procurada por um migrante, verifica a
demanda e faz o encaminhamento para o órgão público que poderá fazer o
atendimento. Também realiza atividades educativas voltadas à divulgação e à
sensibilização de diferentes públicos sobre a temática do migrante, refugiado e
apátrida.
Colaborou Caio Ramos* (estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira)
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