"Da mesma forma que os movimentos migratórios
estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de
destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por
construir, em correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída
e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas
programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis
uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma
sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a
Igreja, esta deve fazer-se presente onde quer que eles estejam", escreve
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, Assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes —
SPM/São Paulo, em texto preparado especialmente para o 16º Encontro Estadual
das CEBs, a ser realizado nos dias 19 a 21 de abril, em São Leopoldo-RS.
Eis o artigo.
Quando abordamos a condição dos migrantes, refugiados,
prófugos, itinerantes, etc., emerge naturalmente a expressão “sinal dos
tempos”. De fato, é nestes termos que a Doutrina Social da Igreja (DSI) se
refere ao fenômeno dessa imensa “multidão dos sem pátria”, a qual, hoje mais do
que nunca, erra pelas estradas de todo mundo. Sem falar dos que morrem ou
simplesmente desaparecem nas águas do Mediterrâneo, nas areias do deserto ou no
anonimato das fronteiras. Mas a temática, evidentemente, não é monopólio de nenhuma
instituição, seja ela pública, privada ou religiosa. Trata-se, antes, de um
desafio gigantesco que envolve várias instâncias das relações internacionais,
do governo, da sociedade civil, das Igrejas, das organizações não
governamentais, entidades, movimentos sociais, e assim por diante. Nos
parágrafos que seguem, entretanto, o acento recairá sobre a ação sociopastoral
e política que se desenvolve no vasto campo da mobilidade humana, de forma
particular as atividades ligadas à Igreja Católica. Sem especificar em maiores
detalhes, seguiremos o método ver-julgar-agir.
Fotografia da mobilidade humana
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, boa
parte dos estudiosos começam a falar de mudança de paradigma. Não se trata de
uma época de mudanças, dizem alguns, mas de uma mudança de época. Ou, ainda, de
uma mudança epocal que agita não apenas a superfície sociopolítica das águas,
mas sobretudo as correntes subterrâneas da economia e dos valores culturais. A
Gaudium et Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje,
documento aprovado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, em 1965, já nos
alertava: “O gênero humano vive atualmente uma fase nova da história, na qual
profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra”
(GS, nº 4).
Os deslocamentos humanos de massa constituem, em geral, uma
espécie de termômetro que mede o grau ou a temperatura de semelhantes
transformações. Tais movimentos, de fato, ao longo da história, costumam
preceder ou suceder modificações de caráter estrutural, tanto de um ponto de
vista socioeconômico quanto de um ponto de vista político-cultural. Formam como
que as ondas aparentes de terremotos ocultos, sinais visíveis de fenômenos
invisíveis. Mais de um século atrás, por ocasião das chamadas migrações históricas
provocadas pela Revolução Industrial, o então Papa Leãa XIII abria a Rerum
Novarum (1891), documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI) com
expressões do tipo “sede de inovações” e “agitação febril” (RN, nº 1). Ambas
retratam de forma vívida e significativa o vaivém dos migrantes em todas as
direções.
Números e trajetórias
Os números relacionados ao fenômeno migratório constituem
normalmente causa de não pouca divergência entre sociólogos, demógrafos e
estudiosos em geral. A razão é simples: boa parte dos imigrantes, em muitos
países, encontram-se em situação irregular, o que os leva a “esconder-se para
proteger-se”. Daí a dificuldade de obter estatísticas confiáveis. A Instrução
Erga migrantes caritas Christi, publicada em 2004 pelo Pontifício Conselho para
a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma logo na abertura: “As migrações
hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nestas
últimas décadas este fenômeno, que envolve atualmente cerca de 200 milhões de
seres humanos, se transformou em realidade estrutural da sociedade
contemporânea, e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista
social, politico, religioso, econômico e pastoral” (EMCC, Apresentação).
Cabem duas observações. A primeira é que, dez anos depois
desse documento vir à luz, em 2014, estimativas da ONU indicam que 232 milhões
de pessoas vivem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos o
volume de migrantes internos e/ou temporários e dos que se movem diariamente
devido ao trabalho, os números tendem a subir de forma considerável. O Conselho
Norueguês para Refugiados (CNR), por outro lado, em seu último relatório
oficial, publicado em 2012, avaliava em nada menos do que 45,2 milhões o número
de refugiados em todo o planeta. Em poucas palavras, somando os migrantes por
razões socioeconômicas, os refugiados e prófugos, os exilados e expatriados, os
nômades e itinerantes, os marítimos e aeroviários… atingiremos uma cifra nada
desprezível frente à população mundial.
A segunda observação refere-se ao conceito de “realidade
estrutural” utilizado pelo documento. Com efeito, qualquer análise atual sobre
a economia globalizada e a sociedade moderna ou pós-moderna não pode deixar de
lado o fator migração, sob o risco de se tornar anacrônica. Historiadores e
outros estudiosos renomados, tais como Eric Hobsbawm, Alain Touraine,
Boaventura Santos, Manuel Castells, Antonio Negri, Jürgen Habermas – entre
outros – dedicam longas páginas e não poucos subtítulos a esse tema da mobilidade
humana. Para alguns, os deslocamentos humanos de massa se converteram, pouco a
pouco, numa espécie de janela para olhar a sociedade atual e o mundo. Em outros
termos, uma chave de leitura privilegiada de qualquer estudo sério e
atualizado.
De onde se originam e para onde se destinam os fluxos
migratórios mais expressivos? O maior número tende a deixar os países
periféricos (ou subdesenvolvidos), migrando em direção aos países centrais (ou
desenvolvidos). Trata-se, portanto de um movimento do sul do planeta – Ásia,
África e América Latina – em busca de novas oportunidades no norte. Por outro
lado, muitas pessoas ou famílias deixam os países do leste europeu, antiga
“cortina de ferro” da ex-União Soviética, tentando construir o futuro nos países
do oeste. O quadro geral dos deslocamentos humanos, porém, não é tão simplista,
a ponto de caber nesse esquema. Ao lado dessas tendências mais significativas,
milhões e milhões de pessoas se movem em todas as direções possíveis e
imaginárias, de forma temporária ou definitiva.
O mesmo se repete em nível nacional e regional. De acordo
com o sociólogo paraguaio Tomás Palau, “a movimentação dinâmica e plural de
pessoas nos chamados ‘complexos fronteiriços’, onde se cruzam as fronteiras de
dois ou mais países, constitui um dos sintomas mais expressivos da economia
globalizada”. Detidos nos aeroportos por Leis de Imigração cada vez mais
rígidas e selecionadoras, os trabalhadores pressionam os limites territoriais
de seus países de origem, tentando a qualquer preço alcançar o outro lado.
Prova disso é o que vem ocorrendo na fronteira entre México e Estados Unidos,
no mar que divide o norte da África e o sul da Europa ou na tríplice fronteira
da zona de Foz do Iguaçu (Brasil, Argentina e Paraguai) – só para citar alguns
exemplos. Trata-se de uma “aventura” que tem deixado um rastro macabro de
cadáveres insepultos, tanto nas areias do deserto e nas águas do Mediterrâneo,
quanto nas trilhas tortuosas da floresta.
Convém não esquecer, também, o que se poderia chamar de
migrações limítrofes. Trata-se do vaivém constante de trabalhadores que se
deslocam de uma região para outra, ou de um país para outro, em busca de
trabalho, quase sempre temporário. Migram para as safras agrícolas, para
projetos governamentais ou para obras de construção civil. A tríplice fronteira
entre Chile, Bolívia e Peru é exemplo disso. E vale sublinhar, ainda, o drama
dos “desplazados” pela violência em suas mais distintas formas, como é o caso
de milhares e milhares de colombianos pressionados entre dois fogos, a
guerrilha e o exército. No primeiro caso temos uma migração de resistência:
sair temporariamente para não fazê-lo em definitivo; no segundo, uma fuga para
os centros urbanos ou para outros países vizinhos.
Nomes e rostos
Mais importante que números, tabelas e estatísticas,
entretanto, é a realidade de pessoas, com seus nomes, rostos, histórias e
destinos. A mobilidade humana reúne trabalhadores individuais e famílias
inteiras, homens e mulheres, jovens e crianças – todos simultaneamente em fuga
e em busca. Fuga da pobreza, da miséria e da fome; da violência e dos conflitos
armados; da discriminação, do preconceito e da perseguição politica, ideológica
ou religiosa… Busca de um solo que os acolha como cidadãos e que possa ser
chamado de pátria.
Três adjetivos poderiam ser usados para classificar as
migrações contemporâneas. Elas são, ao mesmo tempo, mais intensas, mais
complexas e mais diversificadas. Mais intensas que os movimentos de tempos
passados. Como já vimos, cresce progressivamente o número de pessoas que se
deslocam sobre a face do planeta. Importância decisiva aqui teve a revolução
dos transportes e das comunicações. O historiador Peter Gay elegeu o trem e o
movimento como duas grandes metáforas do século XIX, com enormes deslocamentos transatlânticos.
Segundo ele, entre 1820 e 1920, nada menos do que 62 milhões de pessoas teriam
deixado o velho continente europeu em direção às terras novas das Américas, da
Austrália e da Nova Zelândia. Que dizer então dos dias atuais!
As migrações são também mais complexas. Em épocas passadas,
as pessoas arrancavam as próprias raízes da terra que lhes tinha visto nascer e
crescer e onde haviam enterrado seus antepassados. Mas o faziam, em geral, para
transplantá-las para outro lugar e aí voltar a enraizar-se como colonos. A
origem e o destino dos fluxos migratórios encontravam-se mais ou menos
previstos, determinados. Hoje a tendência é uma migração que se repete,
constituída de várias etapas, às vezes sem chegar a aprofundar as raízes em
nenhum lugar. Uma espécie de vaivém sem fim, com horizontes e perspectivas
diversificados. Os movimentos migratórios tendem a navegar conforme o fluxo e
refluxo das ondas criadas pela economia globalizada. Um verdadeiro “exército de
reserva” que não mora, acampa – como já denunciava o velho Karl Marx.
Deslocam-se ao sabor dos ventos e de novas oportunidades de emprego ou
subemprego. Movimento circular, pendular – afirmam alguns!
Por fim as migrações são mais diversificadas. Novas pessoas,
raças, povos e nações passam a fazer parte do contingente de migrantes. O
pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea também se reproduz
nas distintas faces dos migrantes. Em algumas cidades como Nova York, Roma, São
Paulo, Paris ou Londres – entre as mais cosmopolitas – os moradores
praticamente tropeçam diariamente com “os mil rostos do outro”, além de poderem
entrar em contato com diferentes idiomas, bandeiras e costumes. Difícil hoje,
se não impossível, encontrar um país que de alguma forma não esteja envolvido
com o fenômeno das migrações. Uns como lugares de origem, outros como lugares
de destino e outros ainda como lugares de trânsito, sem falar de alguns que
podem, ao mesmo tempo, representar as três funções, como é o caso do México e
Guatemala, de Portugal, Itália ou Turquia.
Radiografia do fenômeno migratório
Não basta, porém, a fotografia. Qualquer médico que se
preze, se realmente pretende curar o paciente, deve tratar de conhecer as
causas mais profundas da enfermidade. Conhecer o mal pela raiz é conditio sine
qua non para receitar o remédio apropriado. O mesmo vale para o fenômeno das
migrações. Em grande parte dos casos, estamos diante de deslocamentos
compulsórios, forçados, os quais podem ser evitados com políticas adequadas,
quer nos países de origem, quer nos países de trânsito e destino. Numa palavra,
constituem males que podem ser corrigidos nas relações nacionais e
internacionais.
Disso resulta a necessidade de tirar uma radiografia da
mobilidade humana. Somente esta pode romper com as aparências às vezes
enganosas. E resulta também a relevância de ouvir as histórias de cada
migrante, conhecer os diversos valores de cada cultura, bem como acompanhar os
estudos mais aprofundados sobre a realidade das migrações. A radiografia revela
não apenas a pele, mas os ossos, os ógãos interiores e o coração. Com isso,
como veremos, pode-se desenvolver uma pastoral mais eficaz.
Motivações imediatas
Perguntemos a qualquer migrante: por que você deixou a sua
terra natal e migrou para outra região ou outro país? O que o levou a dar um
passo tão arriscado e às vezes sem retorno? As respostas podem ser as mais
diversas. Alguns dirão que tinham o desejo de conhecer outros lugares, outros
poderão referir-se um um período de seca prolongada ou a uma forte inundação;
outros ainda mostrarão as cicatrizes de conflitos armados ou se lembrarão com
pesar dos familiares que pereceram vítimas da violência. Muitos dirão
simplesmente que decidiram seguir o caminho de um parente ou amigo que os
precedeu; depois, eles mesmos chamaram seus conhecidos e dessa forma vai se
recompondo a rede familiar.
Um grupo considerável sai em razão da saúde, buscando
lugares onde o atendimento é melhor, mais rápido e dispõe de equipamentos
modernos; não poucos jovens, de ambos os sexos, após o estudo elementar e
secundário, procuram lugares onde podem continuar com os estudos superiores,
com vistas à profissionalização e emprego. Mas as expressões “trabalho”,
“futuro mais promissor” e “vida melhor” praticamente aparecerão em todas as
respostas. Também tem sido comum falar de “hemorragia de cérebros” ou “fuga de
talentos”. Neste tipo de visão vêm à tona, com toda a naturalidade, os chamados
fatores de expulsão e de atração. Mas a primeira resposta do migrante e a
primeira impressão de quem o ouve podem ser enganosas. As motivações imediatas
costumam esconder causas mais profundas. Aqui também a fotografia carece de uma
radiografia.
Causas remotas
Em grande parte dos fluxos migratórios, o contexto
socioeconômico de origem é marcado por um dupla contradição. De um lado, ilhas
de riqueza num oceano de pobreza e miséria, onde convivem lado a lado a
concentração de renda e a exclusão social. A linha que divide o Primeiro e o
Terceiro Mundo, na verdade, passa pelo interior de cada país e até mesmo de
cada região. De outro, desde o início da década de 1970, assiste-se a uma crise
prolongada e estrutural do sistema capitalista de produção que faz aumentar o
movimento circular de imensas massas humanas em todo mundo. A crise se abate,
em primeiro lugar, sobre as pessoas mais vulneráveis, e estas se vêm forçadas a
buscar em terras distantes melhores oportunidades de vida, no rastro mesmo do
acúmulo de capital.
Tomemos o exemplo dos que responsabilizam uma longa estiagem
pela saída da terra natal. Em princípio, a resposta não é incorreta, e sim
incompleta. Se é verdade que a falta prolongada de chuvas faz as pessoas
deixarem a própria região ou país, é igualmente certo que ela, por si só, não
determina o êxodo em massa. A seca não faz mais do que marcar a hora da
partida, mas por trás desse flagelo existe uma estrutura agrária e agrícola que
desde longa data priva as pessoas de qualquer tipo de defesa. Isso se comprova
pelo fato de que os grandes latifundiários, com ou sem chuva, permanecem aí. O
que expulsa, portanto, não é a seca, mas a cerca! Ou seja, as condições
injustas e desiguais da propriedade e posse da terra.
Vale o mesmo para outros tipos de respostas simples ou de
análises a olho nu. No pano de fundo da mobilidade humana em geral, a visão
imediatista, superficial ou simplesmente conjuntural muitas vezes oculta as
causas mais profundas e estruturais. Na imensa maioria dos casos, prevalecem
como raiz da migração uma situação social e econômica adversa à permanência no
local de origem. Falta de trabalho e salário decente, precariedade no sistema
público de saúde e educação, relações trabalhistas análogas à escravidão,
cultura patriarcal em que a mulher é totalmente submissa ao poder masculino,
exploração do trabalho infantil (sem confundir com a iniciação sadia das
crianças a determinados serviços por parte de algumas famílias) – constituem
alguns exemplos de tal situação.
Em certos países e regiões, tratam-se de verdadeiros
resíduos medievais em pleno século XXI. Nisto o capitalismo revela uma de suas
faces ocultas mais flagrantes e perversas: paradoxal e contraditoriamente, com
a contínua revolução tecnológica, coexistem por um lado os implementos de
tecnologia mais avançada, de ponta, e por outro formas de trabalho há tempo
execradas e banidas pela luta sindical ao longo da história. Como afirma o
sociólogo José de Souza Martins, podem conviver lado a lado formas não capitalistas
dentro de um sistema capitalista de produção.
Outras causas dos deslocamentos de massa estão relacionadas,
como vimos acima, com a perseguição política, ideológica ou religiosa que
obriga à fuga; com formas de preconceito, xenofobia e discriminação étnica ou
de credo; com os conflitos armados dentro de um mesmo país (p.ex. Líbano) ou
entre dois Estados diferentes e beligerantes
(p.ex. Israel e Palestina, Rússia e Ucrânia); com os confrontos entre
facções rebeldes e as forças do exército (p.ex. Colômbia); com a violência em
todas as suas formas, particularmente o tráfico de seres humanos provocado pelo
crime organizado; com a disputa pelo controle do tráfico de drogas e armas
(p.ex. México, Colômbia e Brasil); com o trabalho temporário, o qual, no
decorrer dos anos pode levar a uma migração definitiva.
Um olhar bíblico-teológico-pastoral
Existem três maneiras de ler o fenômeno das migrações à luz
da Palavra de Deus. A primeira se reduz a tomar um episódio bíblico ou um
determinado livro – respectivamente os Discípulos de Emaús ou o Livro de Rute –
e a partir dessa aproximação busca aprofundar o tema. A segunda toma textos
bíblicos que se relacionam à temática migratória, costurando com eles uma
reflexão de caráter teológico, espiritual ou pastoral. A terceira, por fim,
trata de ler toda a Palavra de Deus na perspectiva da mobilidade humana, com o
enfoque de uma teologia ou espiritualidade do caminho. Sem desconsiderar as
demais vias, seguiremos esta última, tomando apenas alguns textos
paradigmáticos, do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento, para ilustrar
essa experiência de um povo a caminho.
Olhar o migrante com os olhos de Deus
Com relação à antiga aliança podemos focalizar o olhar sobre
o que os especialistas chamam de “credo histórico” do Povo de Israel: Dt 26,
5-10, em sua versão mais elaborada e Ex 3, 7-10, numa versão mais primitiva.
Trata-se, como se sabe, da experiência que ajudou a fundar o próprio Israel
enquanto Povo de Deus. Confrontando as duas versões, encontraremos quarto
verbos na primeira pessoa do singular, todos atribuídos a Deus, que nos apontam
para um fio condutor que haverá de permear toda a Bíblia. Diz Javé: eu vi a
aflição do meu povo no Egito, eu ouvi seu clamor sob o peso da escravidão, eu
conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo e o conduzir a uma terra onde
corre leite e mel.
As quatro formas verbais – vi, ouvi, conheço e desci –
denotam que, por ocasião de sua “experiência fundante”, os israelitas
desenvolveram a teologia e a espiritualidade de um Deus que não somente está
atento à situação concreta do povo na terra da escravidão, mas sobretudo desce
para acompanhá-lo nos caminhos do êxodo e do deserto; mais tarde, do exílio e
da diáspora. Esse ato de descer se realizará plenamente com o mistério da
encarnação. Aqui o importante é sublinhar a sensibilidade e solidariedade de um
Deus próximo e que, frente à opressão do Faraó, toma partido em favor dos
sofredores e humilhados. Numa palavra, um Deus que privilegia os pobres, não
pelo simples fato de serem pobres nem por serem necessariamente “bons”, e sim
porque são vítimas de circunstâncias históricas adversas.
O movimento profético, por sua vez, não faz senão atualizar
essa mesma teologia e espiritualidade para os tempos conturbados da monarquia e
do exílio. O binômio da aliança – libertação e promessa – se reveste de novo
vigor. Daí seu tríplice enfoque do profetismo: a lembrança de que “foste
escravo no Egito” e por isso agora não deves oprimir nem o estrangeiro que mora
contigo e muito menos teu próprio irmão; a denúncia frente às diversas formas
de opressão, pois “vós chefes de Israel esqueceram o direito e a justiça,
trituram os ossos do meu povo, fazendo dele carne de panela”, dirá o profeta
Miquéias (Mq 3, 1-2); enfim, o anúncio, que aparece como o respiro de um povo
oprimido, esperando a promessa da Jerusalém Celeste, de “um novo céu e uma nova
terra” (Is 65, 17-25).
Quanto aos textos neotestamentários, podemos deter-nos sobre
dois textos de relevância fundamental. De um lado, logo na abertura de seu
Ministério Público, o profeta itinerante de Nazaré (John P. Meier) toma o Livro
de Isaías para anunciar aquilo que se convencionou chamar o “programa de Jesus”
(Lc 4, 16-20; Is 61, 1-2). Revela-se desde o início sua predileção pelos
oprimidos, escravos, prisioneiros e pobres, o que retoma em outros termos a
expressão “órfão, viúva e estrangeiro” do AT. No coração do Mestre estão
mergulhadas as raízes da “opção preferencial pelos pobres”, pois aí encontrarão
carinho especial os marginalizados, indefesos, excluídos e migrantes – “eu era
migrante e vocês me acolheram” (Mt 25,35).
De outro lado, o evangelista Mateus costuma interromper a
narrativa para introduzir pequenos resumos, como a sublinhar algo que não pode
ser esquecido. “Jesus percorria todas as cidades e povoados…”, diz o texto. E
prossegue: “Vendo as multidões cansadas e abatidas, teve compaixão porque eram
como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 35-38). Duas observações: primeiro, chamar a
atenção para o verbo “percorrer”, o qual, por si só, demonstrando a prática
pastoral de Jesus, poderia servir para um bom retiro de conversão. Ele não se
limita a esperar pelas pessoas no templo (ou na porta da Igreja), mas vai ao
encontro dos peregrinos; segundo, entre tais “multidões cansadas e abatidas”,
cabe um destaque particular para o volume de migrantes que erram pelas estradas
de todo o planeta, muitas vezes órfãos, sós e perdidos.
Olhar a Deus com os olhos do migrante
Quem muito caminha aprende a depurar não somente a bagagem,
mas também a alma. Toda a longa travessia ensina a deixar de lado o que é
supérfluo e ater-se ao que é essencial. O ato de migrar e remigrar ajuda a
discernir o que é indispensável do que é negociável. O caminho, principalmente
quando o vaivém se repete uma, duas, três ou mais vezes, traz como lição a
sabedoria de despojar-se do que pesa e retarda os passos, para concentrar-se no
foco, na meta, no horizonte da própria existência humana. Numa palavra, os pés
do peregrino desenvolvem uma mística singular, no sentido de relativizar “as
muitas coisas” para absolutizar “uma só coisa” que é a mais importante, como
vemos no episódio que narra o encontro de Jesus na casa de Marta e Maria (Lc
10, 38-42). Além disso, de acordo com o cor inquietum de Santo Agostinho, o
migrante representa a condição de todo ser humano, peregrino na face da terra,
em busca da pátria definitiva.
De acordo com a Doutrina Social da Igreja (DSI), no coração
de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo. Ao
deslocar-se de um lado para outro, os migrantes são portadores de tais
sementes. Lembrando o Bem-aventurado J. B. Scalabrini – “pai e apóstolo dos
migrantes” – da mesma forma que as aves e os ventos transmitem o pólen que
fecunda a vida, assim também os viajantes de tantas estradas levam consigo
expressões e valores que fecundam a tradição cultural de outros povos. Nisso, a
migração não deixa de ser um instrumento de evangelização que tende a promover
uma depuração e purificação recíproca e permanente das culturas, como nos
recorda o Documento de Aparecida. Além disso, o migrante jamais pode ser
considerado apenas como vítima de exploração no mercado de trabalho. Se é
verdade que, por um lado, ele normalmente é forte candidato aos serviços mais
sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, também é certo que, por
outro lado, sua teimosia indômita e imbatível faz dele um protagonista e um
profeta do futuro. Por caminhos inóspitos e hostis, ou “por mares nunca dantes
navegados” – na expressão do poeta português Camões – o olhar voltado para Deus costuma ser o farol
da “frágil embarcação” de todo migrante.
Nessa perspectiva, a fé e a esperança do povo migrante
costuma ser uma luz que aponta novos horizontes para a história, seja ela
pessoal, familiar ou coletiva. Em sua bagagem, por mais pobre e exígua que
seja, raramente falta algum símbolo da religião de seus ancestrais, e muitas
vezes a Bíblia (ou o Corão, para os muçulmanos). Assim que, o ato de migrar,
por si só, põe em marcha não somente as expectativas do migrante e sua família,
mas também a própria história. Enquanto, por uma parte, o deslocamento compulsório
denuncia na origem a incapacidade de muitas nações em conceder uma cidadania
digna a seus compatriotas, por outra, no trânsito e no destino anuncia a
necessidade de mudanças urgentes e estruturais nas relações nacionais,
regionais e internacionais. Em síntese, não seria exagero afirmar que a frase
de Martin Luther King – I have a dream (eu tenho um sonho) – constitui uma
força motriz na vida do migrante. Parafraseando Euclides da Cunha, “o migrante
é antes de tudo um forte”.
Desafios e perspectivas: o que fazer?
Após uma rápida visão da realidade migratória (Partes I e
II), seguida de alguns elementos bíblico-teológicos-pastorais de luz e
orientação (Parte III), o objetivo desta última parte é o de apontar pistas de
ação sociopastoral e política. Mais do que “inventar a roda”, procuramos
concentrar a atenção sobre determinadas atividades que, em sua maioria, já
estão em curso na Igreja em geral e na Pastoral dos Migrantes em particular.
Acolhida e documentação
A acolhida constitui o DNA da Pastoral dos Migrantes.
Trata-se de abrir o coração, as portas e os espaços eclesiais e culturais para
“o outro, o estrangeiro, o diferente”. Em termos concretos, acolher significa,
antes de tudo, promover uma assistência imediata a quem chega a um novo lugar.
Tal assistência, caso a caso, comporta a preocupação com as dimensões pessoal,
familiar, social, jurídica, educacional, sanitaria, psicológica… Daí a
existência de uma rede de Casas do Migrante, espalhadas tanto nas fronteiras
(entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala ou entre Chile,
Bolívia e Peru), quanto em algumas metrópoles de grande afluência de migrantes
(São Paulo, Santiago, Manaus). Desnecessário acrescentar que, não raro,
torna-se de fundamental importância o ensino da língua local.
A acolhida vem acompanhada de um longo processo de
regularização dos documentos. Sem estes, todas as portas se fecham, a começar
pelo acesso a um emprego decente e com carteira assinada. O trabalho, por sua
vez, reabre uma série de oportunidades. Também neste caso, os migrantes podem
contar com uma rede de Centros de Acolhida e de Orientação, providos de
assistentes sociais, advogados e outros profissionais que podem ajudar a
inserir-se e integrar-se mais rapidamente na sociedade de destino. É conhecida
e notória a forma grosseira com que muitas autoridades da Polícia Federal
tratam os recém-chegados. Sem dúvida, a presença de um profissional
infunde-lhes maior confiança.
Direitos Humanos dos Migrantes
O empenho pela defesa dos Direitos Humanos em geral, e dos
direitos dos migrantes em particular, constitui uma das características da ação
sociopastoral junto ao mundo da mobilidade humana. Boa parte dos imigrantes
permanecem por meses, anos, e até décadas (quando não a vida inteira) na
precária situação de indocumentados – “sin papiers” ou “sin papeles”. Nessa
condição irregular, tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração trabalhista
ou sexual e, além disso, presa fácil para a rede mundial do crime organizado.
Sabemos bem qual o peso da palavra “clandestinos” em
sociedades como Estados Unidos, Europa, Austrália, Japão, entre outras.
Traduz-se concretamente como insegurança, instabilidade, medo e, no fim da
linha, processo de repatriação. Infelizmente, no trato com os imigrantes
desprovidos de documentação regular, o mesmo ocorre nos países subdesenvolvidos
ou emergentes. De tudo isso resulta a necessidade de contar com proteção
jurídica para a conquista e/ou defesa dos direitos à vida e à dignidade humana.
Paróquias multiculturais e pluriétnicas
De um ponto de vista estritamente pastoral, nas paróquias de
acolhida faz-se necessário resgatar e promover os valores culturais e
religiosos dos migrantes. Não é difícil abrir espaço para encontros
multiculturais ou pluriétnicos, tais como festa do padroeiro, festa das nações,
e assim por diante. Aqui, porém, esconde-se uma ambiguidade que, com
frequência, comporta uma armadilha capaz de confundir os incautos. De um lado,
o cultivo da lingua original, das expressões culturais e religiosas ajuda a
cimentar e manter a coesão do grupo étnico, sobretudo em casos de
discriminação, preconceito e hostilidade; de outro lado, contudo, nesse
processo de resgate cultural reside o risco de criar guetos cerrados,
dificultando assim uma integração natural e mais rápida. Em termos metafóricos,
os anjos da tradição religiosa podem converter-se em demônios, promotores de
divisão e isolamento. O desafio é encontrar o equilíbrio entre o respeito às
diferentes etnias e a integração progressiva na sociedade de chegada.
Resgatar e promover os valores inerentes a cada pessoa, povo
e cultura requer, como dimensão primordial, um espaço privilegiado para a
história individual e coletiva. Nessa linha, os encontros de migrantes por
etnia costumam ser extremamente reveladores. Parte-se do pressuposto que a
migração constitui um golpe que deixa feridas, algumas jamais cicatrizadas.
Arrancar as raízes e expô-las ao sol escaldante do caminho tem consequências
inevitáveis. Normalmente sofre quem parte e sofre quem permanece na terra de
origem. Narrar a própria história – como nos ensina a psicologia – é uma forma
de exorcizar as sombras que obscurecem seu percurso. Verbalizar o sofrimento
ajuda a libertar-se do peso que herdamos do passado. Vale o mesmo para a
história do grupo como um todo. Trata-se de promover tempo e espaço para que os
próprios migrantes, ao cruzar seus caminhos, possam intercambiar experiências
e, com isso, enriquecer-se mutuamente.
Presença na origem e no destino
Da mesma forma que os movimentos migratórios estabelecem uma
ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de destino, os agentes
e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por construir, em
correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída e os locais
de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas programadas, missões
populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis uma forma de manter e
fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma sobrevivência justa e
digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se
presente onde quer que eles estejam.
Essa presença da Igreja, simultaneamente no polo de origem e
no polo de destino, não é novidade dos tempos atuais. Com efeito, no final do
século XIX, Dom J. B. Scalabrini fundou dois institutos religiosos (masculino e
feminino) e um instituto leigo para acompanhar os emigrantes italianos, tanto
na própria diocese de Piacenza e demais regiões da Itália, quanto do outro lado
do oceano: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, entre outros países.
Tratava-se, como ele mesmo afirmava, de levar-lhes “o sorriso da pátria e o
conforto da fé”. “Para os migrantes” – dizia ainda – “a pátria é a terra que
lhes dá o pão”, concluindo que “a migração amplia o conceito de pátria”.
Centros de estudos e de pastoral
Com a finalidade de desenvolver a um trabalho mais eficaz e
de maior incidência sociopolítica, torna-se necessário manter uma leitura
científica e atualizada do fenômeno da mobilidade humana. Nasceram assim os
Centros de Estudos Migratórios, hoje espalhados pela Europa, Ásia, África,
América do Norte e América do Sul. Em colaboração e sinergia com outras
entidades acadêmicas, realizam pesquisas, estudos, conferências, encontros,
cursos e seminários no sentido de envolver o maior número de pessoas, como também
de sensibilizar a Igreja, a sociedade civil e as autoridades dos governos para
o drama das migrações. Evidente que semelhante leitura aprofundada dos fluxos e
tendências, causas e consequências da migração mantém-se estritamente conectada
com os itens anteriores. Ela ajuda não somente a incrementar as atividades
pastorais, sociais e políticas, mas também incide sobre as mudanças necessárias
para novas Leis de Imigração.
Vale a esse respeito sublinhar a realização do Fórum
Internacional de Migração e Paz. Em sua 5ª edição (Antigua, Bogotá, Cidade do
México, New York e Berlim), o Fórum tem mantido um duplo objetivo: por um lado,
desvincular o conceito de migração do pano de fundo da ideologia de segurança
nacional e do crime organizado, enfatizando antes suas potencialidades para a
busca da paz; por outro, envolver autoridades políticas, expoentes acadêmicos e
outras personalidades, na tentativa de maior incidência sociopolítica em favor
dos direitos dos migrantes.
Alfredo Gonçalves
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