Centenas de milhares de trabalhadores migrantes no Qatar não receberam compensação financeira ou qualquer outra reparação adequada aos graves abusos trabalhistas sofridos durante a construção e manutenção da infraestrutura para a Copa do Mundo da FIFA, que começa em novembro de 2022, disse hoje a Human Rights Watch.
Em 19 de maio, a Human Rights Watch, a Anistia Internacional, a FairSquare e uma coalizão global formada por grupos de defesa dos direitos dos trabalhadores migrantes, sindicatos de trabalhadores, torcedores de futebol, sobreviventes de abusos e grupos que promovem o respeito aos direitos humanos por empresas disseram que a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) e o governo do Qatar deveriam providenciar reparação pelos graves abusos que os trabalhadores migrantes sofreram desde a eleição do Qatar como anfitrião da Copa do Mundo de 2022, em 2010. Esses graves abusos incluem milhares de mortes e lesões inexplicadas, retenção ou não pagamento de salário e taxas de recrutamento exorbitantes. A Human Rights Watch lançou uma campanha global, #PayUpFIFA, para apoiar esta demanda da coalizão. A Anistia Internacional está publicando seu relatório, “Previsível e Prevenível”, que mostra como a FIFA e o Qatar poderiam reparar os danos por 12 anos de abusos.
“A FIFA e o Qatar não protegeram os trabalhadores migrantes, essenciais para a Copa do Mundo de 2022, mas podem agir para indenizar aqueles que foram gravemente afetados e as famílias dos muitos que morreram”, disse Minky Worden, diretora de iniciativas globais da Human Rights Watch. “A FIFA deve alocar prontamente os fundos necessários para proporcionar uma indenização adequada e evitar que o legado seja de uma ‘Copa Mundial da Vergonha’”.
Durante a última década, grupos de defesa dos direitos humanos têm repetidamente documentado os abusos generalizados que os trabalhadores enfrentam sob o sistema kafala do Qatar (sistema pelo qual o empregador financia a ida ao Qatar do trabalhador migrante) , que pode conduzir a trabalhos forçados. Isto apesar das reformas trabalhistas que as autoridades do Qatar introduziram nos últimos anos em resposta a uma denúncia sobre trabalho forçado junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em março, a Human Rights Watch documentou o retenção abusiva de salários de até cinco meses em uma conhecida empresa de comércio e construção civil do Qatar que operava projetos relacionados à FIFA.
Mesmo sendo submetidos a um maior escrutínio e normas globais, trabalhadores contratados para projetos relacionados a estádios não possuem proteções adequadas. Trabalhadores fora dos estádios estão propensos a maiores abusos. Além disso, existem outras sérias preocupações sobre as deficientes práticas de direitos humanos do Qatar, incluindo restrições severas à liberdade de expressão e reunião pacífica, políticas estatais que discriminam e facilitam a violência contra as mulheres, e um ambiente repressivo contra residentes e visitantes LGBT.
Quando a FIFA, a entidade que dirige o futebol mundial, elegeu o Qatar como anfitrião dos jogos de 2022, ela sabia ou deveria ter sabido que os trabalhadores migrantes que construiriam a grande parte da infraestrutura enfrentariam graves riscos de violação de direitos humanos. No entanto, a FIFA não impôs condições de respeito aos direitos trabalhistas nem empreendeu uma diligência efetiva em relação à proteção dos direitos humanos, disse a Human Rights Watch.
Para Manju Devi, uma nepalesa de 38 anos cujo marido, Kripal Mandal, trabalhador migrante de 40 anos morreu no Qatar em 2022, o único “legado” da próxima Copa do Mundo são as dívidas pelos empréstimos que seu marido fez para conseguir o trabalho que ele morreu fazendo. Como a maioria dos trabalhadores migrantes no Qatar, Kripal Mandal tinha feito um empréstimo a juros exorbitantes para pagar taxas de recrutamento, uma dívida que continua aumentando. Ainda que o Qatar proíba a cobrança de taxas de recrutamento de trabalhadores migrantes e custos relacionados, o governo raramente fiscaliza a aplicação deste regulamento.
A família de Mandal disse que ele trabalhava na construção de um projeto de uma empresa que o designou para o aeroporto e estádios. Sua esposa segue sem compreender sua morte por causa de um ataque cardíaco. “Não posso dizer qual é a razão de sua morte”, disse Manju Devi à Human Rights Watch. “Se é a causa que eles relataram ou algo mais, não sabemos dizer... À noite ele estava falando normalmente e rindo, ... mas ele faleceu por volta das 3 da manhã do dia seguinte”.
A família não recebeu nenhuma indenização por sua morte, e seu empregador chegou a não pagar os 15 dias de salário que lhe eram devidos contratualmente. Manju Devi, mãe de cinco filhos, disse: “Quando ele era vivo, havia uma garantia de que tinha alguém que recebia um salário. Agora, depois que ele faleceu, não temos mais nosso ganha-pão. É muito difícil”.
“As reformas dos direitos trabalhistas no Qatar chegaram bem tarde na preparação para a Copa do Mundo, são muito insuficientes e pouco respeitadas”, disse Minky Worden. “Um grande número de trabalhadores migrantes morreu porque o Qatar não tinha um marco de direitos humanos que protegesse os trabalhadores e lhes permitisse denunciar condições de trabalho perigosas, trapaças salariais e trabalho forçado. Os trabalhadores não deveriam morrer para concluir as obras da Copa do Mundo ou qualquer mega-evento esportivo”.
Em 2016, a FIFA adotou os Princípios Orientadores das Nações Unidas para Empresas e Direitos Humanos e incorporou sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos em seus estatutos. Ela também criou um Conselho Consultivo de Direitos Humanos independente, contratou especialistas em direitos humanos e criou um mecanismo de denúncia para defensores de direitos humanos. Em 2017, a FIFA adotou uma política de direitos humanos que institui que os compromissos de direitos humanos são obrigatórios para todos os órgãos e funcionários da FIFA.
Apesar destes positivos avanços, a FIFA ainda precisa garantir a reparação de danos aos trabalhadores migrantes que sofreram graves abusos ou às famílias. Isto inclui a responsabilidade com os trabalhadores diretamente empregados em projetos da Copa do Mundo e aqueles que construíram e serviram uma gama mais ampla de projetos para a preparação e realização dos jogos, incluindo serviços de transporte, acomodações, segurança, limpeza, entre outros.
A FIFA precisa trabalhar com as autoridades do Qatar durante os próximos seis meses, que antecedem a Copa do Mundo de 2022, para estabelecer um programa abrangente e enfrentar os abusos sofridos pelos trabalhadores migrantes, afirmaram Human Rights Watch, Anistia Internacional, Fair Square e os outros membros da coalizão. A FIFA deveria reservar pelo menos US$ 440 milhões, equivalentes ao prêmio em dinheiro fornecido às equipes da Copa do Mundo de 2022, para investir em fundos para indenizar e melhorar a proteção de trabalhadores.
O programa de indenização deveria ser coordenado de forma participativa após consulta aos interessados, incluindo trabalhadores migrantes, familiares de sobreviventes e sindicatos. Ele precisa ser facilmente acessível aos trabalhadores e suas famílias, muitos dos quais não estarão mais no Qatar. Ele também precisa prever a reparação de danos para uma ampla gama de abusos não resolvidos desde 2010.
Jogadores, torcedores, patrocinadores da FIFA, associações nacionais de futebol e outros podem desempenhar um papel importante na garantia de um legado positivo para esta Copa do Mundo, angariando apoio a implementação de um fundo de indenização para reparar os danos aos trabalhadores migrantes, disse a Human Rights Watch.
“A morte de trabalhadores migrantes no Qatar tem causado um enorme impacto emocional e financeiro em suas famílias”, disse Minky Worden. “De acordo com os compromissos de direitos humanos da FIFA e as obrigações do Qatar, ambos precisam fornecer reparação financeira aos trabalhadores migrantes prejudicados na construção da Copa do Mundo – proporcionando um alívio financeiro às famílias em dificuldades".
hrw.org/pt
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