Silêncio de uma ausência, de um
espaço vazio, de um vácuo sem fundo, de um nome e de um rosto que para sempre
partiram, de uma história brutal e precocemente interrompida. Silêncio dolorosamente estridente, quase ensurdecedor,
como nos faz recordar a canção em homenagem a Jacob do Bandolim, composta pelo
poeta Sérgio Bittencourt e imortalizada na voz de Nelson Gonçalves: “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor
/ Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de
cor / Naquela mesa ele juntava gente / E contava contente o que fez de manhã /
E nos seus olhos era tanto brilho / Que mais que seu filho / Eu fiquei seu fã
/Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim / Se eu
soubesse o quanto dói a vida / Essa dor tão doída não doía assim / Agora resta
uma mesa na sala /E hoje ninguém mais fala do seu bandolim / Naquela mesa 'tá
faltando ele / E a saudade dele 'tá doendo em mim”.
Passado mais de um ano desde que o
novo coronavírus desembarcou em território brasileiro, quantas “casas e
jardins” desertos, quantas “mesas num canto”, quantos sofás órfãos na sala, quantos
“bandolins” abandonados, quanta dor “tão doída”, quantas saudades sem fim? E
que falta fazem aquelas histórias contadas e recontadas na roda íntima da
família – gratuitamente, sabiamente, calorosamente – sobretudo quando restou
apenas o eco sombrio e desolado das palavras silenciadas! Por que se apagou a
luz e o brilho que “nos seus olhos era tanto”, deixando espalhadas ao vento as
cinzas invisíveis de uma catástrofe? É como se até mesmo a memória se desvanecesse
com a separação do ente querido. Nem sequer tivemos o conforto de contar com um
velório decente e uma despedida digna. Partiu solitário, dividindo a tristeza e
a solidão com os membros da família enlutada e destroçada.
Um ano de pandemia. Um ano de intenso
combate a esse inimigo silencioso, invisível e letal. Um ano em que um exército
inumerável de profissionais de saúde teve que tomar decisões que deixaram esses
soldados, a si próprios, com feridas abertas talvez para o resto de suas vidas.
Um de convívio diário e impactante com o fim trágico de parentes e amigos. Um
ano marcado por mais de 260 mil vítimas fatais. No fundo, uma batalha tão
mortífera como poucas o têm sido ao longo da história humana. Guerra que mata e
mutila de forma aleatória e descontrolada, mas em particular abrevia a vida de não
poucos anciãos ou enfermos mais vulneráveis. Assim se foram Fulano, Sicrano,
Beltrano – nomes que simbolizam a tantos que riram, choraram, trabalharam,
lutaram e sonharam nos mesmos caminhos que juntos trilhamos, mas que perderam o
combate para o Covid-19. Assim permaneceram as famílias a quem os falecidos
pertenciam. Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com
os cenários mais macabros, onde reina o silêncio retumbante dos enterrados.
Junto a esse silêncio – de ausência,
vazio e solidão – cresce também uma voz surda e muda, mas nem por isso menos
crítica e consciente do desgoverno das autoridades brasileiras. Desgoverno que
na se refere somente à área da saúde. Ao contrário, reflete-se no desmonte
sistemático e não raro irreversível de políticas públicas construídas a custo
nas últimas décadas. Nesse desmonte, não seria difícil elencar, por exemplo, a
questão do meio ambiente, das relações exteriores, da segurança dos cidadãos,
da educação básica e superior, da ciência, cultura e pesquisa... Daí a ira viva,
ativa e subterrânea que vai estendendo suas raízes pelo tecido esgarçado de uma
sociedade dividida e fragmentada. Parafraseando o escritor estadunidense John
Steinbeck, premio Nobel da literatura (1962), na escuridão úmida do solo, a
revolta faz florescer e amadurecer com força “as vinhas da ira”, prontas para a
vindima. Não importa quando virá a colheita, mas lentamente os brotos vão se
multiplicando e de abrindo para o ar livre, o céu azul e a luz do sol.
Se é verdade que as derradeiras
décadas do século XX representaram uma época de colheita, e se é verdade que
uma geração dificilmente é premiada com mais de uma safra, também é certo que a
semeadura prossegue laboriosa e conscientemente.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 04 de março de 2021
www.miguelimigrante.blogspot.com
Obrigada Alfredinho! Choramos lágrimas e tambem raiva, mas na certeza que a morte é semente de vida nova. Abraços
ResponderExcluir