Escritora fala de sua poesia - que "foge da tentação
de encontrar um rumo inexistente" - e do sentimento contemporâneo de
deslocamento
Adriana Lisboa veio ao Brasil lançar a coletânea de poemas Deriva e o romance Todos os santos (foto: Julie Harris/divulgação )
Adriana Lisboa está completando 20 anos de literatura.
Ela vive nos Estados Unidos e veio ao Brasil lançar dois livros: a coletânea de
poemas Deriva (Relicário) e o romance Todos os santos (Alfaguara). Nesta
entrevista, a escritora fala de sua poesia – que “foge da tentação de encontrar
um rumo inexistente” – e do sentimento contemporâneo de deslocamento. “As zonas
fronteiriças se tornaram de uma urgência aterradora, e ao mesmo tempo
observa-se um discurso cada vez mais encarniçado de exclusão do outro”, afirma.
A palavra “deriva” sugere uma embarcação mais ou menos
perdida, sem rumo. Mas os poemas aqui parecem não estar à deriva; ao contrário,
no conjunto, formam uma espécie de comentário poético sobre o estado das
coisas. Essa dicotomia foi algo pensado para esses poemas?
Tenho a impressão de que de um modo ou de outro estamos
sempre à deriva. A vida não acata o controle que supomos ter sobre ela. Esse
livro foi escrito num momento pessoal e coletivo de sensação de enorme falta de
rumo, entre 2017 e 2019, e acho que os poemas buscam fugir à tentação de
encontrar um rumo inexistente. Gosto da ideia de comentário, que você sugere na
pergunta. Os comentários são às vezes (ou quase sempre), nesse caso,
construídos por interrogações, por um julgamento que não se define, por um
movimento que para mim é como o do mar aberto, quando não se sabe muito bem
para onde se vai. Mas, de todo modo, há ilhas no trajeto, e há também a
liberdade, que é uma espécie de trunfo diante da incerteza de da indefinição.
Como a sua estada fora do Brasil contribuiu para a
elaboração do luto e da saudade presente nas páginas de Todos os santos?
Todos os Santos foi um romance que levei seis anos para
escrever – não trabalhei nele todo esse tempo, mas foi o que levou para vir à
luz, depois de outros projetos descartados. Meu romance anterior, Hanói, saiu
em 2013, e no início de 2014 vivi uma das experiências mais difíceis e
marcantes da minha vida: a morte inesperada da minha mãe. Então, minha língua
materna ganhou uma espécie de novo status, tornando-se de fato a minha mátria,
para usar a expressão de Caetano Veloso. A língua foi refúgio ao longo desses
seis anos fundamentais à elaboração do luto, ao qual se somaram outras perdas
em minha vida pessoal, mas também na esfera coletiva. Todos os santos foi uma
maneira de vencer a tristeza que às vezes parece que vai levar a melhor, de
continuar inteira e com vontade de escrever.
Nas suas últimas ficções, o senso de deslocamento está
muito presente. A última década aprofundou e ao mesmo tempo deturpou a
discussão sobre deslocamentos, migrações e zonas fronteiriças que você aborda nesses
livros?
Em Todos os santos, o deslocamento que mais me interessa
não é o dos personagens à Nova Zelândia, que no livro não é um cenário
essencial, mas quase que um não-lugar, rarefeito e longínquo. Aqui, a migração
das aves me interessa, e o que ela significa em termos de resiliência de uma
espécie, mas também da violência da presença humana no mundo. Tenho a impressão
de que nesses romances o tema do deslocamento veio se ressemantizando e se
ampliando, de modo que hoje já não me interessa tanto falar de choques
culturais etc, mas sim – e aí faço uma ponte com o livro de poesia – esse estar
à deriva que é uma marca dos nossos tempos, mas também a marca da nossa própria
existência no mundo.
Nesses últimos 12 anos, as questões envolvendo
deslocamentos, migrações e zonas fronteiriças se tornaram de uma urgência
aterradora, e ao mesmo tempo observa-se um discurso cada vez mais encarniçado
de exclusão do outro e de defesa violenta do "meu", que é a mais
equivocada de todas as respostas. Nossas conquistas científico-tecnológicas
precisam de uma evolução ética da mesma envergadura.
Estadão
www.miguelimigrante.blogspot.com
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