sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O “problema” da imigração não é a imigração


 Foto wikipedea 

Muito antes de existirem fronteiras, passaportes e alfândegas, os nossos antepassados viviam em pequenos bandos de caçadores-recolectores. Cada grupo conhecia todos os seus membros, partilhava comida, histórias, sonhos e terrores. A sobrevivência dependia de uma coesão interna forte e qualquer desconhecido que se aproximasse podia representar risco: um ladrão de recursos já de si escassos, um portador de doenças desconhecidas ou mesmo um predador na forma de ser humano.

Foi nesse contexto que a xenofobia, isto é, o medo ou desconfiança face ao “estranho”, ganhou raízes biológicas e culturais. Era uma ferramenta de autoproteção, como fugir de um animal selvagem ou evitar uma planta venenosa. No mundo das savanas e das florestas, o instinto feral fazia sentido. Um grupo ou tribo demasiado “aberto” a outros grupos ou tribos rapidamente sofria as consequências dessa atitude, não conseguindo preservar-se o tempo bastante para que essa postura persistisse no “pool” genético ou social. Por outro lado, um grupo ou tribo em que a xenofobia imperasse estaria protegido de toda uma série de potenciais perigos e, portanto, sobreviveria o suficiente para poder passar essa atitude às gerações futuras. Este modo de vida predominou durante cerca de 99,5% da história da nossa espécie, isto é, quase sempre vivemos assim.

Mas a história humana não terminou há dez mil anos. Com o surgimento da agricultura e das primeiras cidades, essa lógica começou a ruir. As aldeias transformaram-se em centros habitacionais/comerciais, e o contacto com pessoas “de fora” deixou de ser uma ameaça para se tornar uma oportunidade: trocas de bens, ideias e tecnologias. O desconhecido passou a ser, muitas vezes, o portador de novas sementes, novas palavras, novas artes. A partir daí, a civilização floresceu de forma exponencial. Da frágil espécie de hominídeo em constante perigo de extinção que fomos durante centenas de milhares de anos, em apenas dez mil anos, passámos a ser a espécie dominante do planeta capazes de proezas inimagináveis (para o bem e para o mal). Conseguimos isto, não por nos isolarmos, não por recearmos os desconhecidos, mas por nos misturarmos, por abraçarmos a diversidade.

No entanto, o cérebro humano não atualizou automaticamente o “software” tribal que herdou do Paleolítico. Em momentos de crise económica ou insegurança social, o velho reflexo ressuscita: culpar o estrangeiro, desconfiar do diferente, erguer muros. É um eco de tempos em que tal atitude podia salvar uma vida, mas hoje apenas empobrece sociedades e reforça divisões artificiais.

Um dos motores mais persistentes dessa perpetuação tem sido a religião. Ao longo da história, muitas tradições religiosas reforçaram a ideia de “povo escolhido”, “verdadeira fé” ou “terras prometidas”, conceitos que criam uma linha invisível mas poderosa entre “nós” e “eles”. Textos sagrados, lidos de forma literal, têm servido para justificar guerras, expulsões e perseguições, alimentando a ideia de que o estrangeiro é não apenas culturalmente diferente, mas espiritualmente ameaçador.

A História está repleta de exemplos. As Cruzadas medievais mobilizaram multidões para massacres em nome da “libertação” de territórios sagrados. A expulsão dos judeus de Espanha e Portugal, no final do século XV, não foi apenas um ato político, mas uma imposição religiosa que exigia a conversão ou o exílio. No mundo islâmico, minorias como cristãos coptas ou iazidis sofreram perseguições e marginalização sob regimes que misturavam autoridade religiosa e política. Em tempos mais recentes, líderes espirituais e políticos têm alimentado, direta ou indiretamente, preconceitos contra imigrantes de outras crenças e culturas, apresentando-os como ameaça à “pureza” moral ou cultural de uma nação ou mesmo à sua viabilidade económica.

Falar em “problema da imigração” é, na verdade, inverter a realidade. O verdadeiro problema é a persistência de um instinto pré-histórico, reforçado ainda por narrativas religiosas exclusivistas num mundo interdependente, onde a cooperação global é não só inevitável como absolutamente necessária. A xenofobia é um fóssil psicológico; insistir nela é como recusar a agricultura com medo de plantar sementes que não conhecemos.

A evolução já nos mostrou que prosperamos quando abrimos portas, prosperamos quando aprendemos com a diferença, prosperamos quando trocamos visões do mundo. O desafio não é erguer mais muros, mas derrubar os que ainda carregamos dentro da nossa cabeça. Só quando entendermos que a diversidade é uma força e não uma ameaça é que deixaremos de ver pessoas como “estrangeiros” e passaremos a vê-las pelo que são: seres humanos, iguais a nós, com histórias para acrescentar à nossa. Tudo o resto é pré-história.

Gabriel Coelho

Professor de Matemática e Ciências Naturais, co-criador do podcast Quarteto dos Três Ateus Miguel e Gabriel

https://www.esquerda.net/

www.miguelimigrante.blogspot.com

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