Mais do que mera repressão pontual, trata-se da reacionarização do sistema político ianque, com tendências ao fascismo e voltada contra as classes trabalhadoras. A Suprema Corte dá autorização legal para perseguições étnico-raciais e a Casa Branca vende como “combate ao crime” a militarização das cidades e a criminalização da pobreza.
Agente da patrulha do EUA persegue imigrante haitiano em 19 de setembro de 2021 — Foto: Paul Ratje/AF
A Suprema Corte do Estados Unidos (EUA) decidiu, nesta segunda (8/9), autorizar que a polícia migratória (ICE) use critérios como “etnia e idioma” para abordar pessoas nas ruas. A decisão, aprovada pela “ala conservadora” na Suprema Corte, representa uma vitória direta para o presidente arquirreacionário Donald Trump e fortalece sua política de perseguição aos imigrantes.
No parecer concordante, o juiz Brett Kavanaugh afirmou que “a etnia aparente por si só não pode fornecer suspeita razoável; no entanto, pode ser um ‘fator relevante’ quando considerada junto com outros fatores importantes”. A posição legitima inúmeras práticas já denunciadas de policiais parando cidadãos de origem latina, apenas por “parecerem estrangeiros”. Em seu voto vencido, a juíza Sonia Sotomayor afirmou: “não deveríamos ter que viver em um país em que o governo pode prender qualquer um que pareça latino, fale espanhol e pareça ter um emprego mal remunerado”.
Antes da decisão da Suprema Corte, instâncias inferiores do judiciário haviam restringido o alcance da política de abordagens. Um tribunal distrital e o Tribunal de Apelações do 9º Circuito haviam determinado que a ICE não poderia “realizar interrogatórios baseados apenas em etnia aparente, idioma ou presença em determinados locais, como fazendas e pontos de ônibus”. Esses tribunais consideraram que tais práticas violam a “Quarta Emenda” da constituição ianque, que supostamente protege cidadãos contra buscas e apreensões arbitrárias. Ainda assim, a Suprema Corte, sem justificativa detalhada, reverteu as decisões.
Esse resultado escancara as pugnas e contradições internas do Estado ianque, além de deixar claro o predomínio da centralização política em torno do Executivo, que sob Trump amplia o controle sobre as forças de repressão e molda o próprio funcionamento das “instituições”.
A decisão também consolida a tendência de transformação da Suprema Corte em avalista da ofensiva anti-imigrantes do governo Trump. Na prática, o tribunal torna-se peça de sustentação de um projeto fascista que criminaliza comunidades inteiras a partir de características raciais e culturais. O contraste entre a promessa cínica de “breves abordagens” feita por Kavanaugh e os relatos de cidadãos detidos violentamente, algemados, agredidos e deportados evidencia como a lei é moldada para dar aparência de legalidade ao arbítrio.
ICE e a ‘indústria da deportação’
As práticas da polícia migratória (ICE) não se limitam às patrulhas nas ruas. Desde o início do segundo mandato de Trump, multiplicaram-se as denúncias de policiais mascarados e fortemente armados, em plena luz do dia, detendo pessoas em bairros pobres, postos de trabalho e até em lava-rápidos. Muitos dos alvos, cidadãos estadunidenses de origem latina, interrogados e detidos apenas por “falarem espanhol” ou “aparentarem ser estrangeiros”. O argumento legal de “suspeita razoável”, agora respaldado pela Suprema Corte, serve de fachada para legitimar a criminalização de qualquer trabalhador latino no EUA.
A perseguição, porém, se conecta a um sistema mais amplo: a chamada “indústria da deportação”. Para expandir sua capacidade de detenção, a ICE consolidou “parcerias” com cadeias locais e xerifes de condados em vários estados. Em julho, cerca de 7,1 mil pessoas por dia estavam presas em unidades municipais a serviço da agência, quase 10% de todo o contingente de imigrantes detidos.
O negócio é lucrativo, com a ICE pagando entre 70 e 110 dólares por preso ao dia, o que gera receitas milionárias para pequenos condados, que já veem nisso um negócio. O monopólio de imprensa O Globo relata o exemplo da cidade Butler, em Ohio, onde 4 milhões de dólares do orçamento anual do xerife local vêm diretamente desses contratos, revelando como a repressão se transforma em fonte de financiamento estatal e privado.
Os relatos são de condições degradantes dentro dessas prisões. Há denúncias de retirada de colchões e roupas de cama, falta de acesso a itens básicos como copos e talheres, além do uso rotineiro de spray de pimenta contra os detidos. Inspeções apontaram violação de direitos em diversas instalações. Em abril, um jovem colombiano de 27 anos tirou a própria vida em uma cadeia no Missouri, após semanas de confinamento sem acesso a um advogado. Muitos dos encarcerados sequer possuem histórico criminal, mas, ainda assim, são tratados como criminosos de alta periculosidade.
Ao transformar prisões em negócio e detidos em fonte de lucro, o Estado ianque aprofunda sobremaneira o nível de exploração social a partir do financiamento da violência, convertida em renda direta para condados, empresas e políticos locais.
Chicago: principal alvo
Chicago se tornou o epicentro da nova onda de repressão. A “Operação Midway Blitz”, anunciada pelo Departamento de Segurança Interna, foi apresentada como ofensiva contra imigrantes indocumentados, por meio do cerco às comunidades latinas. Com um tom militarista desde o início, a Casa Branca chegou a publicar uma imagem de Chicago em chamas, com helicópteros e a legenda “Eu amo o cheiro de deportações pela manhã. Chicago está prestes a descobrir por que o Departamento de Guerra [como Trump renomeou o Pentágono] se chama assim”.
Os efeitos foram imediatos: famílias inteiras deixaram de sair de casa por medo, ruas ficaram mais vazias e festividades tradicionais, como os desfiles do Dia da Independência do México, foram canceladas ou adiadas. Em bairros latinos, conselheiros municipais relataram prisões arbitrárias, como a de um vendedor ambulante de flores e de um trabalhador que apenas aguardava o ônibus na volta para casa. A intimidação naturalmente não atingiu apenas os imigrantes “indocumentados”, mas também cidadãos naturalizados e filhos de migrantes, que passaram a evitar escolas, hospitais e transporte público por receio de serem abordados e detidos.
Os números também desmontam a retórica de Trump. Em 2025, Chicago registrou queda de 32% em homicídios e 21,6% em crimes violentos até setembro, segundo dados oficiais. O factóide da “cidade em caos” não encontra respaldo nem nos indicadores, mas serve como pretexto para a militarização da vida cotidiana e o envio de tropas federais a bairros de maioria latina e negra.
‘Democracia’ do apartheid
O Estado ianque, despindo-se completamente da capa da “democracia”, cristaliza o apartheid interno, no qual a cor da pele, o idioma falado e a origem determinam quem pode circular livremente e quem está sujeito a ser detido a qualquer momento. Essa institucionalização, contudo, não é uma novidade, mas a atualização de mecanismos históricos de segregação.
A política remete facilmente ao apartheid da África do Sul, que obrigava a população negra a portar “pass laws” [passes internos] e viver confinada em áreas determinadas, sob ameaça de prisão. No próprio EUA, as leis Jim Crow, vigentes até a segunda metade do século XX, impuseram uma segregação brutal em escolas, transportes, empregos etc, amplamente legitimadas pelo Estado ianque e sua Suprema Corte. Hoje, em vez das placas “whites only” [apenas brancos], há cadeias apinhadas de imigrantes, operações federais e a legitimação da etnia como critério de “suspeição” e segregação.
Mais do que mera repressão pontual, trata-se da reacionarização do sistema político ianque, com tendências ao fascismo e voltada contra as classes trabalhadoras. A Suprema Corte dá autorização legal para perseguições étnico-raciais e a Casa Branca vende como “combate ao crime” a militarização das cidades e a criminalização da pobreza.
O resultado é uma sociedade em que direitos são privilégio de poucos e imigrantes, negros e trabalhadores são tratados como “inimigos internos” de um Estado que se apresenta ao mundo como “guardião da liberdade”.
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