Acredito que devemos encarar a migração na América Latina de maneira menos crítica e mais natural, com o olhar atento e cuidadoso de quem percebe um movimento cultural acontecendo em mão-dupla. Para além da dor e das crises geopolíticas, o encontro de povos reinventa sabores, sotaques e expressões artísticas. A crise venezuelana, em sua urgência, nos faz lembrar de como a resiliência do continente se manifesta na coragem de criar e se reinventar. Empresto aqui a minha percepção, de forma singela, sobre essa transformação silenciosa que cria, na adversidade, novos caminhos para a formação e o reconhecimento de nossa identidade.
A migração não é apenas um apêndice na história da América Latina, mas um de seus aspectos mais constantes e definidores. Antes mesmo das fronteiras nacionais, hoje devidamente demarcadas, já havia tupis, guaranis, maias, incas e centenas de outros povos em movimento, trocando, guerreando e criando uma diversidade cultural que hoje é nossa herança primeira. O século 20 viu chegar levas de italianos e japoneses, somando-se a fluxos anteriores de espanhóis atraídos pela economia agroexportadora. Já nas décadas mais recentes, testemunhamos o fluxo de bolivianos, cubanos, haitianos e, de forma mais aguda e volumosa, venezuelanos, que reconfiguram o panorama migratório regional. Enxergar esses movimentos apenas pela crise ou pela dor é perder de vista que somos um continente erguido no encontro, por vezes violento, por vezes na irmandade, de mundos distintos.
A chegada de milhares de venezuelanos ao Brasil, Colômbia, Peru e Equador, um contingente que já supera 6,5 milhões de pessoas, colocou à prova os sistemas de saúde, educação e assistência social desses países. É inegável e urgente abordar a vulnerabilidade de crianças fora da escola, profissionais altamente qualificados e subempregados e o drama humano de deixar tudo para trás. No entanto, paralelamente a esses desafios, uma transformação discreta, mas crescente, acontece nas feiras, nas escolas, nas cozinhas e nos ateliês. É a reconhecida e histórica resiliência do povo latino-americano, nosso patrimônio intercultural mais valioso, que se manifesta criando novas formas de ser e estar no mundo.
A arte sempre foi o termômetro sensível desses encontros. Artistas de todo o mundo, muitos deles migrantes ou descendentes, têm usado suas obras para romper estereótipos e materializar a dimensão humana dessa experiência. A exposição itinerante Far From Home (Longe de casa), que esteve em São Paulo em 2018, evidencia bem esse fenômeno. Sob curadoria de Nathalie Duchayne e Eduardo Saretta, a mostra reuniu artistas brasileiros e estrangeiros para homenagear a vida no exílio e discutir o “estar longe de casa” por meio de pinturas, esculturas e instalações. Artistas como o muralista Daniel Melim, o casal de mestres artesãos Dona Magdalena e Seu Valentim, e a joalheira Kika Rufino, residente na Alemanha, trouxeram perspectivas que falam do quão complexo é se reconstruir longe do lar, transformando a experiência da migração em ato criativo e de reinvenção.
Para além das galerias, essa reinvenção é cotidiana e sensível. É o sabor que se transforma, como o do pabellón criollo venezuelano, que ganha um toque brasileiro, enquanto um chef peruano incorpora ingredientes locais à sua ceviche em Bogotá. A culinária, linguagem universal do afeto, torna-se um meio de diálogo e acolhimento. É a língua que se enriquece, como o “portuñol” que nasce espontaneamente nas zonas de fronteira e nas comunidades de migrantes não é uma corrupção do idioma, mas uma solução criativa para a necessidade urgente de comunicação. É a economia que se revitaliza, pois o empreendedorismo imigrante mostra-se um acelerador das economias locais.
Estudos de organismos como a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) mostram que os migrantes tendem a apresentar uma taxa de empreendedorismo superior à média da população local. Essa energia não se traduz apenas na abertura de pequenos negócios, como restaurantes, barbearias e lojas especializadas, que atendem tanto à sua comunidade quanto ao público em geral. Ela introduz novos conceitos, serviços e formatos de negócio, diversos do estabelecido, fomentam a concorrência e, em última análise, enriquecem o comércio e a cultura das cidades que os acolhem.
São muitos ainda os campos em que podemos perceber essa sutil reinvenção e amadurecimento de nossa identidade, como na dança, na música, ou na televisão, por exemplo, mas vejo em um campo em especial um desafio e, talvez, a maior oportunidade de consolidar todos esses processos. Falo da educação. A inclusão de crianças e adolescentes migrantes não está só no ato da matrícula. Exige que os sistemas educacionais se adaptem, incorporando a diversidade linguística e cultural como uma riqueza e não como um obstáculo. É necessário combater a xenofobia, formar professores sensíveis às novas realidades e entender que a sala de aula é o espaço perfeito para construir a verdadeira integração. Quando uma criança venezuelana, boliviana ou peruana, indígena ou não, tem a chance de compartilhar sua história e sua cultura com colegas brasileiros, e vice-versa, ambos saem transformados, mais ricos em humanidade e mais conscientes do complexo legado que é a identidade latino-americana.
A lição que fica, penso, não é apenas sobre a capacidade de sobreviver às mudanças, mas sobre a coragem de criar oportunidades. A migração venezuelana, em sua dramaticidade, bate à porta com feridas históricas de nosso continente, mas também aponta para um caminho de superação. Ela nos lembra que a identidade latino-americana não é fixa e purista, mas um processo contínuo de mestiçagem cultural, um “mexido cultural” onde o novo emerge do encontro, por vezes conflituoso, mas sempre criativo, entre diferentes olhares.
A verdadeira provocação que fica é se estamos, como sociedades receptoras, prontos para não apenas assistir, mas para aprender e nos deixar transformar por essa força que chega continuamente? Estamos dispostos a reconhecer que a resiliência do migrante é, no fundo, o mesmo impulso que, há séculos, mantém vivo o grito diverso e insurgente da América Latina? A resposta, talvez, esteja sendo gestada agora mesmo, na feira do Brás (SP), nas praças públicas em todo Brasil, aqui no Memorial da América Latina e nas salas de aula, onde o amanhã se inventa, todos os dias, com sotaques diferentes.
https://memorial.org.br/
www.radiomigrantes.net
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