sábado, 6 de setembro de 2025

Com mais de cem nacionalidades, número de estrangeiros nas escolas de São Paulo dobra em cinco anos


Os estudantes do ensino médio Ana Carolina Chirinos, Kelly Thais, Leonel Alexander e Lizeth Quispe, da escola estadual Amadeu Amaral, onde metade dos alunos são bolivianos — Foto: Maria Isabel Oliveira / O Globo

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 — São Paulo

Os alunos se entreolham, um tanto assustados, enquanto a professora explica as diferenças entre os quatro porquês da língua portuguesa. Todos os 16 estudantes da sala de aula, em uma escola de Perus, na Zona Norte paulistana, são haitianos e dão os primeiros passos com o idioma falado no Brasil. Em São Paulo, o número de alunos estrangeiros nas redes estadual e municipal disparou. Nas instituições da prefeitura da capital, são 13.200 matriculados de múltiplas nacionalidades, mais do que o dobro do registrado cinco anos antes. Na esfera estadual, o aumento foi em patamar próximo, passando de 11.500 para 20.400 entre 2019 e 2024.

Na cidade de São Paulo, são mais de cem nacionalidades representadas, como mostram dados abertos da prefeitura analisados pelo GLOBO. A maior fatia desse contingente é de bolivianos: eles são 55% dos estrangeiros no ensino básico municipal e 41% na rede estadual. Na capital, concentram-se na Zona Leste, em bairros como Brás e Belenzinho. A área é conhecida pelo varejo têxtil, onde atuam bolivianos, em especial na área de confecção de roupas.

É nessa região que fica a Escola Estadual Amadeu Amaral. Metade dos cerca de 1.110 estudantes matriculados é boliviana, mas a influência dos estrangeiros é ainda maior, já que diversos alunos nasceram no Brasil, mas são de famílias do país vizinho.

Cidade de São Paulo tem mais de 100 nacionalidades na rede municipal: em 2024, escolas somaram 13.200 alunos estrangeiros

Bolivianos são a maioria, sendo 55% dos imigrantes, segundo dados da prefeitura; veja as principais nacionalidades abaixo



Estudante do último ano do ensino médio, Kelly Thais, de 18 anos, conta que, em casa, a família se comunica em português, espanhol e aymará, língua falada por populações indígenas da Bolívia:

— Estou procurando bolsas para cursar Neurociência no exterior. Minha mãe só estudou até o quinto ano, e meu pai tem o ensino médio completo. Serei a primeira da família com faculdade.

Também do terceiro ano, Leonel Alexsander, de 17 anos, conta que, antes de chegar ao colégio de maioria boliviana, foi alvo de preconceito em outras unidades da rede pública:

— Não conseguia socializar. Mudei de escola aos 10 anos porque sofria bullying, e só então comecei a aprender mais português, antes misturava com espanhol. Hoje estou estudando Contabilidade e quero fazer Engenharia Elétrica.

Referência para imigrantes


A concentração de alunos estrangeiros em algumas unidades faz com que certas escolas virem referência para os imigrantes. É o caso da EMEF Espaço de Bitita, localizada no Canindé, na região central. Por ali estão bolivianos e crianças de países como Angola, Bangladesh, Paquistão e outras nações. Em 2011, 10,5% dos alunos da unidade eram de nacionalidades diversas. Neste ano, o índice chega a quase 40% dos 570 matriculados.

Diretor da instituição há 14 anos, Claudio Marques da Silva Neto conta que, ao assumir o posto, se deparou com relatos de extorsão e violência contra os imigrantes. Foram criados, então, diversos projetos para acolher os alunos e melhorar a convivência, numa iniciativa que ganhou reconhecimento da Unesco. A escola também foi laureada em 2018 no Prêmio Faz Diferença, do GLOBO, na categoria sociedade e educação.

— No início não tínhamos um trabalho direcionado para esse grupo. São bons alunos, que tentam assimilar o currículo com muita avidez. O que pode acontecer é um percalço com a barreira linguística, mas depois de seis meses isso já não é um problema — garante Neto.

A unidade tem comitês liderados pelos alunos, que discutem diversos temas relacionados à escola, em áreas como migração, esporte e acolhimento de novos estudantes.


Leonel Alexsander, de 17 anos: planos para o ensino superior — Foto: Maria Isabel Oliveira/ O Globo


Na outra ponta da cidade, na Zona Norte, fica o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja I) de Perus, da prefeitura. Dos 800 matriculados, cerca de 350 são haitianos aprendendo português e terminando ciclos do ensino básico. Desde o terremoto que devastou o país da América Central, em 2010, o bairro virou um reduto dos imigrantes do Haiti.

— Eles começaram a chegar no fim de 2016. A escola virou um local de encontro, onde falam a própria língua, perguntam sobre emprego, moradia — conta a professora Cristiane Fialho, protagonista da cena que abre esta reportagem.

A sala onde ocorrem as aulas é decorada com frases em crioulo, um dos idiomas falados no Haiti. Na noite do dia 27 de agosto, uma quarta-feira, Fialho pedia que os alunos repetissem interjeições usadas no Brasil. Entre as fileiras, somando a voz aos coros de “psiu” e “ufa, ainda bem”, está Robenson Francois, de 28 anos.

Fora da sala, Francois, que trocou Porto Príncipe por Perus, tenta equilibrar o português formal com as gírias paulistanas que ouve em canteiros de obras. No país há um ano, ele conta que levou dois meses para arranjar um “trampo”:

— No Haiti não tem mais tranquilidade, é muita insegurança, bandidos. Lá estava trabalhando com entrega, dava aula de inglês. Deixei minha esposa e minha filha de 10 meses, que ainda não cheguei a conhecer. Vim em busca de uma vida melhor para nós.

Da mesma turma, Stephania Pierre, de 27 anos, se mudou depois de interromper uma graduação em Administração. Na terra natal, trabalhava na área de comunicação numa ONG. Aqui há sete meses, atua como empacotadora:


Os haitianos Stephania Pierre e Robenson Francois: estudantes de português em Perus, São Paulo — Foto: Edilson Dantas/ O Globo

— Estou aqui com a minha irmã mais velha, que já morava no Brasil há cinco anos. Ouço música gospel para aprender português.

Avaliações são desafio


Outro espaço que oferece aulas para imigrantes é a Missão Paz, entidade filantrópica que apoia imigrantes e refugiados em São Paulo. Em 2024, foram atendidos cerca de 600 alunos — este ano, até agosto, já são mais de 700. O padre Paolo Parise, coordenador da instituição, conta que o acesso à educação para os estrangeiros foi facilitado nos últimos anos, mas ainda existem problemas.

— Temos escolas que trabalham muito bem essa questão, com diretores criativos, mas em outras existem dificuldades, e o aluno estrangeiro passa a ser visto quase como um problema. Onde existe baixa densidade demográfica de estrangeiros, os desafios são maiores. Por vezes não sabem, por exemplo, em qual série inserir o aluno — diz Parise.

Outro ponto sensível são as avaliações. A Secretaria Municipal de Educação divulgou em maio uma lista de 25 diretores de escolas que deveriam participar de um programa de requalificação após uma queda no rendimento das unidades em indicadores como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb. A ação, na prática, foi interpretada como um afastamento, já que os diretores agora passam a maior parte do tempo trabalhando fora das unidades, exercendo outras funções. Claudio Neto, da EMEF Espaço de Bitita, estava na relação.

— A questão das notas (no Ideb) atinge frontalmente escolas com grande percentual de alunos imigrantes — argumenta o diretor, acrescentando que esses estudantes precisam de um tempo maior para assimilar o conteúdo, mas acabam participando das avaliações, o que impacta o desempenho da unidade.

A secretaria sustenta que Claudio não foi afastado e no momento “participa de uma formação inédita destinada a diretores de escolas municipais de tempo integral”. A pasta informa ainda que assegura o acesso a estudantes de outras nacionalidades, independentemente da situação da documentação do aluno. Já a secretaria estadual frisa que o acesso à rede é livre, independentemente da nacionalidade. O órgão pontua que cabe a cada unidade aplicar as avaliações para definir a etapa escolar em que será inserido o aluno.

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