Malcolm Harris
QUANDO AS PESSOAS contavam ao trabalhador humanitário Fayad Mulla que os requerentes de asilo acabavam de desembarcar em solo grego e eram imediatamente perseguidos por grupos de “homens mascarados” encarregados de sequestrá-los, Mulla achava difícil dar crédito às histórias.
Relatos e rumores sobre operações secretas das autoridades gregas já circulam há anos, mas Mulla achava difícil demais acreditar na ideia de criminosos com aprovação estatal que correm por aí espancando migrantes, que depois são atirados em porta-malas de carros e obrigados a entrarem em barcos e voltarem para o país de origem. “É um país da União Europeia”, disse ele a um entrevistador da BBC, ao explicar seu ceticismo. Isso mudou quando ele filmou a ação.
Com uma lente de longo alcance, ele filmou guardas gregos na ilha de Lesbos conduzindo famílias de migrantes a uma lancha. Em uma cena, é possível ver claramente um homem de uniforme, usando uma balaclava e carregando uma criança para o barco. É assustador, mas faz parte da progressão lógica na escalada de violência contra migrantes, à medida que os governos corroem os direitos relacionados a asilo e resgate.
A BBC entrevistou Mulla para seu novo documentário, “Dead Calm: Killing in the Med?” (Silêncio Mortal: Assassinatos no Mediterrâneo?), que começa com a pergunta e termina com os fatos: a guarda costeira da Grécia transformou o direito internacionalmente reconhecido dos refugiados de solicitar asilo em um jogo perverso, perseguindo todos os homens, mulheres e crianças que desembarcam por iniciativa própria no arquipélago do país, em um esforço coordenado para negar a eles o direito de asilo.
‘Uma vez capturados pelos homens mascarados, os migrantes são colocados em botes de borracha sem motor, e literalmente empurrados na direção das águas territoriais da Turquia.’
Longe de ser exceção, a estratégia grega se tornou um modelo reconhecido na guerra internacional contra os requerentes de asilo. Da Venezuela ao México, à Líbia, à Hungria, ao Japão, estamos presenciando um esforço semi-coordenado entre os países ricos para abolir uma das poucas responsabilidades jurídicas que os ricos e confortáveis do mundo têm com os pobres e aflitos.
O vídeo de Mulla, publicado pela primeira vez no New York Times em 2023, é uma prova cabal, mas os analistas também reuniram toneladas de provas circunstanciais que demonstram um padrão inevitável. O grupo de pesquisa Forensic Architecture rastreou e mapeou mais de 2 mil exemplos do que apelidaram de “drift-back” (flutuação reversa) nas águas territoriais gregas entre 2020 e 2023. Uma vez capturados pelos homens mascarados, os migrantes são colocados em botes de borracha sem motor, e literalmente empurrados na direção das águas territoriais da Turquia. Segundo a Forensic Architecture, no lugar de uma expulsão direta pelas autoridades, “processos naturais e características geográficas do arquipélago do Egeu — correntes, ondas, ventos e rochas desabitadas — realizam a expulsão, distanciando os autores do impacto de suas ações letais”. O grupo contabilizou 55.445 pessoas expulsas com uso da técnica ao longo de três anos, incluindo 24 mortes e 17 desaparecimentos.
Não está incluído na contagem da Forensic Architecture o naufrágio do navio de migrantes Adriana no Mediterrâneo, em junho de 2023, em que mais de 600 pessoas perderam a vida. Os sobreviventes contam em “Dead Calm” que a guarda costeira da Grécia respondeu à emergência do navio com tanta lentidão, que a negligência presumida se transforma em provável má fé. No final das contas, foi um iate de luxo de bandeira mexicana que fez o resgate, como possível. Mas os gregos não foram os únicos responsáveis pelo desastre do Adriana: como diz Mulla, a Grécia faz parte da UE, e a UE tem a Frontex, uma agência internacional de gestão de fronteiras. A Frontex estava monitorando a situação de sua sede, na Polônia, mas isso não ajudou muito os passageiros do Adriana. Pressionado pela BBC a recriminar as práticas agora bem documentadas da guarda costeira grega, o responsável pelos Direitos Fundamentais na Frontex, Jonas Grimheden, deixou o set de filmagem.
Embora pareça que a UE está defendendo a guarda costeira grega, o contrário está mais perto da verdade: a Grécia, que ocupa o extremo sudeste da UE, é responsável por impedir a entrada do maior número possível de migrantes na Europa.
“Essa fronteira não é apenas uma fronteira grega, é uma fronteira europeia”, declarou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em uma coletiva de imprensa em conjunto com o primeiro-ministro da Grécia, em 2020. “Agradeço à Grécia por ser o aspida da Europa nestes tempos”, disse ela, usando a palavra grega para “escudo”. A Grécia fica entre a Europa e dezenas de milhares de pessoas que buscam refúgio dos conflitos no Norte da África e no Oriente Médio, e defende essa fronteira vestindo uma máscara e armada com uma faca de combate. Em apoio a essa atividade de fronteira, a UE direcionou bilhões de euros para seu estado-membro. A Frontex também emprega meios de vigilância aérea, seus próprios barcos, e até pessoal em terra, que já colaboraram com a polícia grega no esquema de drift-back.
A Europa não só financia o lado grego: a UE enviou mais de US$ 10 bilhões (R$ 54 bilhões) em assistência à Turquia, que não é um estado integrante do bloco, para ajudar na proteção da fronteira. Outros bilhões foram para Egito, Tunísia e Mauritânia, com o mesmo objetivo de reduzir o número de requerentes de asilo que chegam a alguma parte da Europa onde podem exercer seus direitos invioláveis.
No hemisfério ocidental, o México atua como un escudo para os Estados Unidos, protegendo seu vizinho mais rico ao norte.
O presidente americano Joe Biden encerrou a política da era Trump de “Remain in Mexico” (Permaneçam no México), mas seu decreto em junho para interromper o processamento dos pedidos de asilo na fronteira sul teve efeito semelhante. E sob forte pressão dos Estados Unidos, o México adotou a prática de baixo custo de empurrar os migrantes de volta para o sul do próprio país, contando com a difícil jornada para dissuadir as pessoas de viajarem para os EUA saindo da América Central e da América do Sul. No mês passado, a Associated Press noticiou acusações de uma requerente de asilo de que teria sido espancada por soldados mexicanos na frente de seus filhos, antes de serem todos colocados em um ônibus para o sul. Essas cenas e sua conexão direta com as políticas dos EUA estão tão bem documentadas que qualquer negação é implausível, mas isso parece suficiente para Biden e os organismos internacionais perante os quais os chefes de estado supostamente respondem.
Se Donald Trump vencer em novembro, o ataque dos EUA contra o direito de asilo só vai se intensificar. Como outros demagogos conservadores, o ex-presidente tornou “a criminalidade dos migrantes” um dos focos de sua campanha, que usou como resposta para tudo no debate eleitoral do mês passado. Juntamente com a política “Remain in Mexico”, podemos esperar que Trump restabeleça Acordos de Cooperação de Asilo, ao estilo da Turquia, com El Salvador, Guatemala e Honduras, no mínimo. O plano de vitória da Fundação Heritage, chamado Projeto 2025, vai ainda mais longe, insinuando um ataque frontal ao próprio direito de asilo. “Organizações e acordos internacionais que corroem nossa Constituição, o estado de direito, ou a soberania popular não devem ser reformados”, escrevem os autores, “devem ser abandonados”.
Os covardes arquitetos do Projeto 2025 estão corretos em uma coisa: não é prerrogativa individual dos estados proteger suas fronteiras por qualquer meio que escolham. O direito dos refugiados de requerer asilo está consagrado por estatuto na Convenção sobre os Refugiados de 1951, e é, em teoria, uma das poucas garantias do direito internacional. A não devolução deveria ser um dos direitos humanos.
Mas se os países ocidentais ricos que fazem valer o direito internacional conspiram para burlar a mesma regra, não há muito que ninguém possa fazer a respeito. A Hungria, por exemplo, atualmente está sujeita a uma multa diária de 1 milhão de euros (5,8 milhões de reais), arbitrada pelo mais alto tribunal da UE como punição por devolver migrantes, mas o primeiro-ministro Viktor Orbán deve ter como pagar: em dezembro, der Leyen gentilmente desbloqueou 10 bilhões de euros (58 bilhões de reais) em fundos bloqueados da UE para a corja antiliberal que ocupa o poder no país. No conjunto, o posicionamento da UE fica claro — e é claramente contra a lei. As agências de investigação vão continuar a elaborar seus relatórios, mas não é possível recorrer contra as decisões de homens mascarados portando armas.
O objetivo é transformar um direito em um raro privilégio.
Até o momento, os países não estão questionando diretamente a Convenção sobre Refugiados, mesmo tomando medidas para reduzir ou até anular suas proteções. Nesse ambiente, os países que ocupam o espaço entre os mais ricos do mundo e os mais pobres e devastados pela guerra podem oferecer um valioso serviço de anteparo e guarda de fronteira. Cada requerente de asilo que a Grécia manda de volta é menos um que a Alemanha precisa se preocupar em aceitar.
Embora um mundo com mais instabilidade climática e política produza mais refugiados, o ataque global contra o direito ao asilo não é um resultado do excesso de imigração. O Japão, por exemplo, endureceu suas políticas em junho para facilitar a deportação dos requerentes de asilo, embora o país restritivo só tenha concedido status de refugiado a 303 pessoas em 2024, o que ainda assim foi um recorde nacional. Algumas centenas de pessoas em uma população de 100 milhões não representam nenhum fardo real sobre os recursos do país; a questão é o princípio de que as pessoas tenham direito a fugir das dificuldades e buscar refúgio. O objetivo é transformar um direito em um raro privilégio.
Para chegar a isso, o ocidente precisa encontrar maneiras de tornar o asilo ainda menos interessante e mais arriscado que as guerras e catástrofes de que as pessoas estavam fugindo antes. As autoridades precisam inventar novas crueldades para praticar, arquitetar novos pesadelos para recaírem sobre os mais desesperados do mundo. Com os mascarados, as facas e os espancamentos, a guarda costeira da Grécia mostra como se faz.
“Há muito a se aprender com as autoridades gregas e o governo grego, em termos da abordagem que eles adotaram em relação à migração ilegal”, declarou à imprensa a secretária do Interior do Reino Unido, Suella Braverman, após uma visita guiada às operações da guarda costeira em Samos, uma ilha conhecida pelos drift-backs. Em abril, no dia seguinte à aprovação de uma nova política no Reino Unido que envolve a deportação dos requerentes de asilo para Ruanda, cinco pessoas se afogaram no canal da Mancha a caminho da Grã-Bretanha, incluindo uma criança.
No que diz respeito aos países ricos, esses afogamentos não são um problema, mas um modelo de solução política. Então, se você quer uma imagem do futuro, imagine um sujeito mascarado sequestrando uma criança, colocando em um bote, e empurrando em direção ao mar aberto, vezes sem fim.
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