Segundo um relatório da ONU publicado no dia 5 de julho, a viagem em que os migrantes e refugiados embarcam através do Saara é mais mortal do que a travessia do Mediterrâneo, portanto é uma das rotas migratórias mais perigosas do mundo. Acidentes, desidratação, fome e violência já causaram a morte brutal de mais de 1.000 pessoas no maior deserto quente do mundo nos últimos três anos.
Delphine Allaire - Cidade do Vaticano
Se o Mediterrâneo é um cemitério, o deserto é um calvário. Para efeitos deste novo relatório intitulado “Nesta jornada, ninguém se importa se você vive ou morre”, 32 mil migrantes e refugiados foram entrevistados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), tonde descrevem ossos e cadáveres espalhados na areia e confidenciando seu medo de morrer durante a travessia. Vincent Cochetel, enviado especial do ACNUR para o Mediterrâneo Ocidental e Central, apresentou o relatório na sexta-feira, 5 de julho, em Genebra.
Porque é que a travessia do Saara parece ser mais perigosa do que a travessia do Mediterrâneo?
O primeiro perigo que os migrantes e refugiados nos falam diz respeito aos ataques de gangues criminosas e bandidos que os roubam, privando-os de todos seus pertences. Para as mulheres, existe um risco maior de violência sexual nestas rotas. Depois existe a violência por parte dos contrabandistas ou traficantes que obrigam as pessoas a fazer um certo número de coisas no caminho. Não é a bela viagem que foi prometida, mas extorsões, trabalho forçado e, por vezes, a exploração sexual. Os perigos também vêm das autoridades nos postos fronteiriços, de pessoas que abusam da sua posição para extorquir dinheiro destes infelizes migrantes e refugiados no deserto, e não apenas nas rotas que levam ao Norte de África ou depois à Europa por barco, mas também nas rotas que levam ao Norte da África ou depois à Europa por barco, também aquelas que vão para o interior e para o sul do continente africano.
Eles viram pessoas morrendo no deserto, pessoas que caíram de caminhões e não foram resgatadas pelos contrabandistas ou doentes abandonados no meio do nada. A maior parte deles viu principalmente cadáveres nessas estradas no sul da Argélia, no norte do Níger, no sul da Líbia, mas também em outras partes do Saara.
Porém, quando fazemos a pergunta: “Você conhece alguém que morreu no mar?” Recebemos muito menos respostas. Com base nestes relatos, acredita-se que haja muito mais mortes na terra firme do que no mar.
Como obter informações e atuar no Saara? Não é um buraco negro para as ONG e as instituições internacionais?
Certamente. Existem vários buracos negros como esses aos quais poucas pessoas ou ninguém têm acesso. Para as organizações internacionais é muito difícil ir até lá devido às condições geográficas extremas, mas também porque os Estados não querem que as organizações humanitárias testemunhem esta violência silenciosa e secreta. Trata-se de um fenômeno que recebe pouca cobertura midiática porque é menos visível do que um barco em perigo no Mar Mediterrâneo.
As organizações humanitárias precisam encontrar outros canais de informação: trabalhar um pouco mais com os líderes tradicionais, com as autoridades locais, que são testemunhas e, por vezes, também elas vítimas destes grupos. Trabalhar em um sistema de investigação, identificação e referenciação destas pessoas que controlam pequenas cidades e oásis nessas rotas.
Qual é o perfil dos migrantes que tentam a travessia do deserto? Seus países de origem estão mudando?
Em termos gerais, o perfil não muda muito. Dependemos muito dos dados fornecidos pelos Estados.
Quando migrantes e refugiados atravessam o Mediterrâneo para chegar à Europa, aproximadamente uma em cada duas pessoas obtém asilo ou autorização humanitária na Europa. Considera-se, portanto, que uma em cada duas pessoas necessita de proteção internacional. A outra pessoa geralmente deixa o seu país por razões econômicas, para estudar na Europa ou qualquer outra coisa.
No continente africano é praticamente a mesma coisa. A maioria dos migrantes e refugiados permanece no continente africano. 70% permanecem no país vizinho ao seu país de origem com a intenção, quando as coisas melhorarem, de regressar para casa.
As únicas mudanças recentes que tiveram um impacto nesta mobilidade em direção ao Norte da África são as crises sudanesas – 10 milhões de pessoas deslocadas – e a guerra no Mali e no Burkina Faso, que força muitos cidadãos destes países ao exílio. Aqui, novamente, nem todos vão em direção do Norte da África, muitos burquinenses vão principalmente para os países do Golfo da Guiné, na África Ocidental.
Uma vez superados os perigos do Saara, as pessoas ainda estão dispostas a atravessar o Mediterrâneo para chegar à Europa?
No seu próprio país, 21% das pessoas entrevistadas afirmaram ter em mente um destino e que, independentemente das informações sobre os perigos, dariam o mebohr de si para alcançá-lo. 79% se arrependeram de ter feito esta escolha: se soubessem quais seriam os riscos reais, não teriam realizado a viagem. É muito interessante. Para muitos, a Líbia é o destino final. 70% das pessoas chegaram ao seu destino final quando chegam à Líbia.
Que políticas de acolhimento estão em vigor nos países da costa norte-africana no final da viagem ao Saara? Com quais possíveis violações e abusos observados?
O principal problema é que todos os países do Norte da África ratificaram instrumentos internacionais relativos à proteção dos refugiados, sejam eles instrumentos internacionais ou instrumentos regionais, mas nenhum país do Norte da África tem uma lei sobre asilo.
Todos os outros países do continente africano possuem sistemas de asilo que funcionam mais ou menos bem, o que não é o caso do Norte da África. Estes países alegam sempre que são países de trânsito. Isso não é verdade. Na época da pandemia, há três anos, vimos todos os tipos de comunidades, tanto migrantes como refugiados, nos países do Norte da África, a maioria dos quais trabalhavam no setor informal da economia. Contudo, sem um quadro legislativo, isto significa que as pessoas não têm o direito de permanecer. A situação deles é muito precária.
E com os incidentes derivados das divisões em algumas comunidades, existe o risco de que as coisas acabem mal, como as ondas de expulsões da Argélia para o Níger, da Tunísia para a Líbia, para a Argélia, da Líbia para outros países vizinhos. Estas expulsões em massa não são a solução, porque as pessoas vão para outros países e depois partem novamente.
Quais soluções de proteção podem ser elaboradas para melhorar a assistência nestas rotas do Saara e por que atores?
Os Estados devem chegar a um acordo. Nenhum Estado sozinho pode responder aos desafios de uma melhor gestão destes movimentos no continente. Precisamos de trabalhar em uma abordagem baseada no percurso, nos caminhos que as pessoas percorrem. As dinâmicas nas comunidades não são necessariamente as mesmas, por isso devemos também fazer um esforço para saber quem as influencia, como financiam as suas viagens, que atividades do programa têm um valor estabilizador onde a proteção precisa ser melhorada, trabalhar no regresso; há pessoas que precisam de ajuda para voltar para casa. Deve ser implementada toda uma série de atividades, não apenas por parte de organizações humanitárias.
Os Estados devem assumir a responsabilidade por estas soluções baseadas em estudos no terreno e não devemos abandonar esta obrigação de solidariedade. Antes de tudo, precisamos salvar vidas humanas, independentemente do estatuto das pessoas envolvidas, sejam elas refugiados ou migrantes. É uma denominação importante, mas não em termos de ajuda emergencial. O traficante não sabe se uma pessoa é migrante ou refugiada. A Europa deve também ajudar os países ao longo destas rotas a criar mecanismos de proteção e assistência que proporcionem alternativas dignas às viagens perigosas e irregulares. Um pouco no espírito daquilo que os Estados europeus adotaram com alguns Estados africanos na cúpula de La Valleta em 2015.
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