sexta-feira, 1 de março de 2024

Os custos humanos das políticas de migração da União Europeia

 Movimentos migratórios, embora frequentes na história da humanidade, têm se intensificado no atual cenário geopolítico, desafiando as fronteiras que dividem o mundo em Estados-nação desde a Modernidade. Em 2015, a foto de uma criança morta por afogamento em uma praia da Turquia comoveu e se tornou símbolo da crise migratória e do drama vivenciado por milhares de refugiados que saem forçadamente dos seus países em busca de proteção e de melhores condições de vida. A criança era Alan Kurdi, refugiado sírio que fugiu com sua família de Kobane, cidade que foi palco de violentas batalhas entre militantes extremistas muçulmanos e forças curdas. Da família, apenas o pai sobreviveu à tentativa de travessia de barco entre a Turquia e a Grécia, em que, além dos familiares, morreram pelo menos outras nove pessoas. Casos como o do menino Alan se replicam diariamente, conformando o que Judith Butler[1] chama de “vidas abjetas”, excluídas da condição de cidadania e de humanidade, tanto fora como dentro das próprias fronteiras.

Migrantes atravessando o Mar Mediterrâneo para chegar na Europa (Guarda Costeira Italiana/Massimo Sestini)
Migrantes atravessando o Mar Mediterrâneo para realizar migração para a Europa (Guarda Costeira Italiana/Massimo Sestini)

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), mais de 270 mil refugiados e imigrantes arriscaram suas vidas cruzando o Mar Mediterrâneo em 2023. Assim como o pequeno Alan Kurdi, 4.110 pessoas não conseguiram chegar ao destino final. Até 25 de fevereiro deste ano, 25.048 migrantes e refugiados atravessaram as águas e chegaram à Europa pela Espanha (13.586), Grécia (6.271), Itália (4.403), Chipre (1.511) e Malta (66). Infelizmente, 169 morreram ou estão desaparecidos.[2]

De 2016 a 2021, o quantitativo de pessoas que tentaram sair da Líbia de barco e que foram devolvidas à força ao país aumentou. A União Europeia investiu mais de 70 milhões de euros na capacidade de gerenciamento de fronteiras desse país. Ao retornar à Líbia, as pessoas são presas e mantidas em centros de detenção não regulamentados, onde não há acesso a cuidados de saúde. O número de interceptados pela guarda costeira da Tunísia também aumentou nos últimos anos e, além de serem barradas no mar e devolvidas à força, as pessoas também têm sido expulsas para a Líbia e Argélia, países vizinhos.

As causas dos movimentos migratórios são variadas e vão desde guerras e conflitos nos seus países de origem, em que são obrigados a deixar seus territórios e se deslocar, até pobreza extrema, falta de recursos para sobreviver, desemprego, violência e fome. Ainda, o movimento em direção ao continente europeu tem impacto devastador. Desde 2015, mais de 28.201 pessoas morreram ou desapareceram durante a travessia, e os riscos não terminam quando chegam ao destino. Aqueles que viajam irregularmente pelo continente relatam abusos, violências, adoecimentos e são impedidos de cruzar fronteiras.

As pessoas que buscam segurança também são presas de forma violenta em países que não pertencem à União Europeia, mas que têm acordos de cooperação migratória, impossibilitando o acesso a cuidados de saúde e proteção. Há, por exemplo, excessos em relação à conduta da guarda costeira da Líbia durante as interceptações no mar, o que, em alguns casos, coloca em risco a vida de muitas pessoas.

Apesar dos esforços para conter imigrantes em países fora da União Europeia, elas continuam a fazer travessias marítimas e terrestres em busca de segurança e proteção. Nas fronteiras, entretanto, se deparam com cercas de arame farpado e com violência física brutal, em vez de resgate e assistência. Atualmente, os muros e cercas das fronteiras se estendem por mais de 2 mil quilômetros.

Em toda a União Europeia, tanto adultos quanto crianças são cada vez mais excluídos dos sistemas de acolhimento e proteção e forçados a viver em condições precárias. Países como Bélgica, França e Holanda colocaram em prática políticas de recepção cada vez mais hostis com o objetivo de impedir os chamados movimentos secundários. O secretário de estado para asilo e migração da Bélgica e a agência de recepção belga (a Fedasil), por exemplo, foram condenados mais de 8 mil vezes por tribunais nacionais e mais de 2 mil vezes pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos por não fornecerem abrigo às pessoas migrantes.

Além disso, os Estados europeus, em particular a França, a Bélgica e o Reino Unido, estão usando a idade como critério para negar acesso à proteção a pessoas que buscam segurança e outras proteções específicas concedidas a crianças que viajam sozinhas. Políticas hostis privam os menores de idade de proteção, status administrativo e representação legal. Quando chegam à França, muitos deles permanecem fora do sistema de amparo ou têm que esperar muitos meses até que possam se beneficiar dos serviços sociais e de proteção. Sem qualquer acesso à acomodação, eles enfrentam isolamento e falta de moradia, que as condiciona a riscos à saúde decorrentes da má nutrição, do clima frio, da violência, da exploração sexual e do tráfico.

O modelo de hotspot (ponto de acesso) estabelecido na Grécia e na Itália para conter e identificar rapidamente as pessoas que chegam às fronteiras, para implementar procedimentos rápidos e facilitar os retornos forçados, tem sido, há muito tempo, a base do gerenciamento de migração da União Europeia. Ao longo dos anos, os hotspots têm se caracterizado por gerar um estado contínuo de crise e sofrimento, com deficiências constantes em termos de proteção e acesso a serviços essenciais, como água, saúde e recepção segura.

Durante anos, Médicos Sem Fronteiras tem soado o alarme sobre o custo humano das políticas migratórias europeias, emitindo relatórios, comunicados à imprensa e cartas propondo recomendações para garantir proteção, assistência e acesso a cuidados oportunos e de qualidade para as pessoas que tentam chegar à Europa.

Equipes médicas e humanitárias de Médicos Sem Fronteiras têm tratado as consequências devastadoras das políticas e práticas migratórias restritivas e têm testemunhado seu custo humano. Com atuação na Líbia, nos Bálcãs, no Mar Mediterrâneo Central, na Polônia, na Grécia e na Itália, esses lugares se tornaram laboratórios e campos de testes para políticas e práticas cada vez mais prejudiciais, e narrativas de refugiados foram reunidas no relatório Death, despair and destitution: the human costs of the EU’s migration policies.[3]

Pacientes de Médicos Sem Fronteiras relatam que foram submetidos a retornos forçados ao longo de suas jornadas. Esses incidentes geralmente são acompanhados de agressão física, detenção, humilhação verbal, incluindo insultos raciais e linguagem depreciativa, além de outras formas degradantes de tratamento. Esses atos são realizados principalmente por agentes estatais. Além do risco de ferimentos causado pelo muro entre Belarus e a Polônia, Médicos Sem Fronteiras testemunhou também pessoas presas na área entre as duas fronteiras – chamada de “zona da morte” – por períodos prolongados, expostas a condições climáticas adversas e à violência, o que agrava os problemas de saúde física e mental.

Entre 2021 e 2023, as equipes de Médicos Sem Fronteiras em Samos, na Grécia, ofereceram 2.900 consultas de saúde mental, durante as quais 34% dos pacientes relataram ter experimentado sintomas de trauma, enquanto 28% apresentaram ansiedade. Transtornos depressivos, estresse pós-traumático e transtornos de ansiedade foram prevalentes em todos os grupos populacionais, inclusive crianças. Situações diárias de estresse, como condições de vida precárias, medo de deportação e insegurança são os principais fatores que afetam a saúde mental dos refugiados.

Vivemos tempos marcados por travessias e deslocamentos de corpos obrigados a desterritorializarem-se e re-territorializarem-se, em um mundo permeado por fronteiras que definem Estados e nações. Nesse contexto, vidas abjetas, contidas ou expulsas, são tratadas como restos: desde os milhões de imigrantes forçados pelas guerras pós-modernas e suas limpezas étnicas, passando pelos “sem papéis” que povoam as metrópoles, aos que terminaram suas travessias no fundo do mar, o mundo se tornou uma máquina de produzir catástrofes, comportando multidões à deriva que margeiam as fronteiras que dividem o espaço territorial, simbólico, religioso ou cultural. A partir dessas figuras, simbolizadas no refugiado, sem direitos nem garantias, é que urge a necessidade de um regime social com políticas de proteção e cidadania de fato efetivas, solidárias e que compreendam que toda vida merece ser vivida.


Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.

https://diplomatique.org.br/

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