terça-feira, 22 de agosto de 2023

A relação entre a dívida e as políticas migratórias europeias


22 de Agosto por Felipe Milin , Irene Valde



Introdução

O ano de 2023 volta a ter um balanço catastrófico em termos de vítimas das políticas migratórias europeias.

Em 22 de junho de 2023, o naufrágio de um arrastão decrépito proveniente da Líbia, ao largo do Peloponeso, causou centenas de mortos. A 13 de julho de 2023, outra embarcação carregada de migrantes virou-se ao largo de Lampedusa, provocando a morte de cerca de quarenta pessoas. Passados poucos dias, uma mãe e sua filha, que tentavam chegar à Tunísia, provenientes da Costa do Marfim, foram encontradas mortas no deserto. A nova rota adoptada pela maioria dos/das migrantes em busca de terras europeias passa actualmente pelo Mediterrâneo Central, ou seja, entre o Norte de África e a Itália. Esta rota é também a mais perigosa do mundo, com mais de 20.000 mortos desde 2014, segundo a Organização Internacional das Migrações (OIM) [1]. Estas mortes trágicas era previsíveis, infelizmente. Resultam das políticas de segurança da UE e seus estados-membros desde finais da década de 1990, que alimenta o «deixa morrer» por via da incapacidade de lidar com os fenómenos migratórios de forma estrutural e atenta ao acolhimento e inclusão dos exilados.

Quando abordamos a questão das migrações, é essencial desestigmatizar um fenómeno inerente às sociedades humanas desde o início da sua existência, defendendo firmemente o direito de migrar. Por outro lado, é igualmente crucial compreender as relações económicas que embebem esse fenómeno. Embora a tónica seja posta, com frequência, na «imigração ilegal» ou «clandestina» massiva que chega ao território europeu, devemos ter presente que essa imigração apenas representa uma ínfima percentagem dos movimentos migratórios à escala mundial. De facto, embora o número total de migrantes internacionais aumente, passando de cerca de 150 milhões de pessoas em 2000, para 280,6 milhões em 2020, em termos relativos (percentagem) à população mundial ela permanece estável. Os/as migrantes internacionais representaram 3,6 % da população em 2020, e, em comparação, 2,8 % em 2000 e 2,3 % em 1970. Ou seja, 96,4 % da população mundial vive no seu país de origem [2]. Ao mesmo tempo que exageram o fenómeno migratório, a saturação mediática e política das imagens sugere uma invasão ou um conflito civilizacional que expressa toda uma mitologia das ideologias racistas e reaccionárias. Com efeito, a maioria das migrações não corre dos países do Sul para os países do Norte (entre os quais a Europa): uma grande parte dos fluxos ocorre entre países da mesma região. No entanto, é com base nessas ideias fantasiosas que se constrói a política migratória dos países ricos, em particular os da União Europeia. Essas políticas migratórias fazem parte de um sistema de relações económicas e políticas internacionais baseado na acumulação de riquezas nos países do Norte Global.

A dívida como mecanismo criador de desigualdades entre os países condena uma parte da população a migrar: O resultado das políticas de ajustamento estrutural nos últimos 40 anos

É importante começar por recordar os laços entre as políticas migratórias assassinas e o conjunto do sistema de relações económicas internacionais entre os países ricos (em particular os países europeus) e os países que os rodeiam. Sob o pretexto de quererem contribuir para o desenvolvimento das suas antigas colónias, os países ocidentais e as instituições financeiras internacionais estabeleceram, ao longo do século XX, um sistema de trocas económicas em que a dívida desempenha um papel de relevo. Esse sistema perpetua, para não dizer agrava, as desigualdades e a dependência em relação aos países ricos.

Ao tentarem copiar para os países dependentes o modelo de desenvolvimento económico dos países desenvolvidos, a ideologia dessas instituições faz com que as condições de desigualdade dos desenvolvimentos se perpetue e que as desigualdades face ao mercado mundial de divisas subordine as economias dependentes aos países desenvolvidos. Assim, a falta de capitais nacionais nos países dependentes levou-os a aceitar empréstimos massivos provenientes do Norte Global [3]. Além disso, os empréstimos são geralmente estabelecidos em dólares, o que faz com que o custo da dívida dependa das variações da política monetária norte-americana. Foi precisamente a subida das taxas de juro aquando da crise de 1970 que empolou a dívida dos países em desenvolvimento, obrigando-os a aceitar programas de ajustamento estrutural que acabaram por reforçar a sua dependência em relação aos países desenvolvidos. Esta situação voltou a repetir-se em 2022, no seguimento de políticas monetárias que visavam contrariar a inflação, de modo que o garrote da dívida voltou a apertar-se sobre grande número de países. Em suma, os países do Sul estão a enriquecer as economias dos países do Norte, por via dos mecanismos da dívida.

Impacto das políticas de ajustamento estrutural sobre alguns dos países donde partem fluxos migratórios para a Europa

Paquistão. O Paquistão encontra-se desde 2022 num estado de asfixia financeira. O país deve 45 mil milhões de dólares a instituições multilaterais (ou seja, o equivalente a 14 % do seu PIB), deve 27 mil milhões à China e 8,5 mil milhões aos países membros do Clube de Paris, nomeadamente à Alemanha e à França [4] [5]. O serviço da dívida está a mergulhar o país numa crise profunda. A subida das taxas de juro, no seguimento das políticas monetárias restritivas da FED (Federal Reserve, EUA) levaram a que o custo do reembolso da dívida se tenha multiplicado, passando a representar o grosso do orçamento de Estado paquistanês.

Sri Lanka. O Sri Lanka (ex-Ceilão) encontra-se mergulhado em crise económica há anos, agravada desde 2022 pela penúria de certos bens indispensáveis, entre eles o acesso à electricidade. Esta crise agravou-se com a derrocada do governo em 2022 [6]. Os problemas de solvabilidade do país levaram o novo governo a celebrar um novo acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), a fim de receber uma ajuda financeira de urgência que lhe permitisse sair de uma falência de 51 mil milhões de dólares [7] [8]. A China, por seu turno, aproveitou a independência do Sri Lanka para reforçar o seu domínio na zona, adquirindo infraestruturas chave, como o aeroporto e o porto de Colombo. Entretanto, o apoio do FMI, na ordem dos 3 mil milhões de dólares, permitiu fazer face aos reembolsos mais urgentes aos maiores credores.

Gana. Por seu lado, o Gana, um dos maiores produtores de ouro e cacau, encontra-se numa situação de crise sem precedentes, no seguimento dos choques resultantes da pandemia e da guerra na Ucrânia. O país vê-se a braços com uma reestruturação da dívida, via Clube de Paris, desde finais de 2022 [9] [10], cujos membros detinham 18 % da dívida total do país. Estas dívidas bilaterais são geralmente fornecidas ou garantidas por outros países. A situação de crise profunda do Gana levou o país a pedir um apoio suplementar ao FMI, permitindo-lhe o acesso a 3 mil milhões de dólares suplementares. Em troca, o Governo comprometeu-se a reduzir as despesas públicas, a fim de mais seguramente reembolsar as dívidas [11].

A reprodução das desigualdades Norte-Sul por via das políticas migratórias europeias

As profundas desigualdades entre países pobres e países ricos e as relações de dependência dos primeiros em relação aos segundos representam a continuação da dominação das antigas regiões colonizadas pelos antigos e novos imperialismos. A diferença entre as antigas e as novas relações de dominação consistem em que estas se estruturam em torno de uma aparente igualdade entre os países, nos mercados internacionais. Esta igualdade aparente no que diz respeito à circulação de capitais contrasta com a criminalização da mobilidade dos seres humanos.

Desde a instituição dos acordos de Schengen que acompanharam a constituição da União Europeia, a política de liberdade de circulação das pessoas dentro da UE foi acompanhada do aferrolhar das fronteiras externas. A migração extra-europeia tornou-se uma questão política de primeira ordem, subordinada à lógica de protecção da soberania territorial dos países membros. Temendo uma nova «crise migratória», no embalo da acumulação de crises (económica, geopolítica, ecológica, sanitária, etc.), Itália, Espanha, Malta, Chipre e Grécia (o grupo Med5) defenderam no início de 2022 a instituição de um «mecanismo adequado de repartição dos migrantes» entre os estados membros [12]. Reconhecendo o fracasso dos mecanismos de pré-distribuição criados após a crise de acolhimento de 2015, a principal exigência do grupo Med5 era que a UE redistribuísse os exilados que chegam a estes países numa base obrigatória. Daí resultou a aprovação pela Comissão Europeia, em junho de 2022, de um mecanismo de solidariedade voluntária. Esse mecanismo pretendia reduzir a pressão nos países sobre os quais assenta (em consequência, nomeadamente, do sistema Dublin) a maior parte das responsabilidades de recepção e acolhimento das pessoas em busca de asilo na UE. No entanto, este mecanismo não funcionou e o objectivo de aumentar o número de transferências de pessoas em busca de asilo nos estados mais ao norte não foi cumprido. Segundo Statewatch, apenas 207 foram transferidos para fora dos países membros que fazem parte da primeira linha de acolhimento no início de 2023 [13].

Por outro lado, a aplicação deste mecanismo de repartição decorreu no contexto da negociação de um novo pacto sobre a migração, proposto pela Comissão Europeia. Tal pacto, discutido neste momento pelo Conselho da UE e o Parlamento Europeu, prevê uma resposta ao pedido de mais solidariedade entre os estados membros, tornando-a «obrigatória»  [14]. Em junho passado, o Conselho da UE propôs um acordo sobre os dois pilares essenciais da reforma de asilo e migração: o regulamento sobre a gestão do asilo e da migração (RGAM), que engloba nomeadamente as tarefas de solidariedade dos estados membros em relação aos países de entrada e as regras ditas de Dublin, e o regulamento sobre os protocolos de asilo (RPA), que orienta a responsabilidade e a burocracia de asilo nas fronteiras  [15]. Este mecanismo de solidariedade obrigatória será flexível nas suas diversas modalidades. Assim, os estados membros deveriam escolher, em função de uma tabela de repartição predeterminada:

  • Ou participar no esforço de relocalização das pessoas consideradas elegíveis para protecção internacional, ao chegarem às fronteiras externas, onde é examinado o seu pedido de asilo;
  • Ou participar no novo conceito de «patrocínio do regresso», que permite aos Estados que não desejam acolher migrantes mostrar «solidariedade de uma forma diferente», envolvendo-se activamente na execução das expulsões daqueles que a UE e os seus estados-membros desejam expulsar, com a possibilidade de concentrarem os seus esforços nas nacionalidades para as quais as perspectivas de expulsão bem sucedida são mais elevadas;
  • Ou contribuir materialmente, logisticamente, financeiramente ou politicamente para a dimensão externa da política europeia de migração (destacamento de pessoal, medidas para reforçar as capacidades de gestão das fronteiras, etc.). Segundo o Conselho, «os estados-membros devem ser livres de escolher o tipo de solidariedade para o qual desejam contribuir e nenhum estado-membro deve ser obrigado a efectuar relocalizações»  [16]. Torna-se óbvio que este sistema de solidariedade obrigatória não responde às questões levantadas pelos Estados do Med5. Se o pacto for adoptado nestes termos, tratar-se-á de uma solidariedade cosmética; os estados poderão optar por substituir o acolhimento dos exilados no seu território pelo financiamento do regresso dos exilados ao seu país de origem ou pelo investimento na militarização das fronteiras.
    Várias outras propostas deste pacto inquietam as ONG especializadas em questões migratórias. Na sua forma actual, o seu conteúdo ameaça reutilizar velhas receitas mortíferas, ineficazes e dispendiosas. Além disso, pode exacerbar as desigualdades entre os países da UE, em matéria de protecção dos/das refugiados, ao introduzir procedimentos obrigatórios nas fronteiras, ao reforçar a noção de «primeiros países de entrada» como critério de responsabilidade e ao introduzir procedimentos extremamente complexos. A generalização de «acordos à medida» com países terceiros, a fim de reter as pessoas migrantes afastadas das fronteiras Schengen ou multiplicar os sistemas de confinamento, de triagem e de retenção nas fronteiras Schengen e até mais além destas, poderá tornar-se norma.

O modelo de acolhimento «à la carte» para os países mebros contrasta com o dogmatismo que caracterizou a aplicação das regras fiscais que fundaram o mercado único. As desigualdades no peso da gestão das políticas migratórias ecoam as relações de desigualdade entre países membros, que se tornaram evidentes após a crise de 2008. Foi assim que países como a Grécia, a Itália e Espanha tiveram de sofrer as políticas de reajustamento impostas pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). Ao mesmo tempo, esses países encontram-se na primeira linha de «defesa» da «fortaleza europeia». No caso da Grécia, o acesso aos investimentos por parte da UE ficou condicionado ao acolhimento de pessoas migrantes.

O exemplo da «parceria global» com a Tunísia

À margem das negociações do pacto, a Comissão Europeia também está em negociações com a Tunísia, para pôr em prática uma «parceria global» composta por cinco pilares, sendo um deles a migração e a mobilidade  [17]. Segundo Giorgia Meloni, a primeira-ministra italiana, que acompanhou as negociações, a par nomeadamente da presidente da Comissão Europeia e de Mark Rutte (primeiro-ministro da Holanda), esta parceria entre a Tunísia e a UE «pode ser considerada um modelo para o estabelecimento de novas relações com o Norte de África». Trata-se de um acordo em moldes semelhantes aos do acordo UE-Turquia, assinado em 2016  [18]. A Tunísia, que substituiu a Líbia enquanto principal país de saída do continente africano, provoca grandes inquietações em Bruxelas e nos estados-membros, por causa da sua proximidade à costa italiana. As entradas pela península de Itália estão a crescer fortemente (+ 158 %) desde o início de 2023, segundo a Frontex e a OIM  [19]. Esta subida pode ser explicada, entre outras razões, pela degradação das condições de vida na Tunísia e na Líbia.

Os montantes prometidos à Tunísia pela UE em matéria de migração incluem um pacote de 105 milhões de euros para gestão da migração em 2023  [20]. Esta ajuda europeia está parcialmente ligada à concessão, ainda em curso de negociação, de um crédito do FMI no valor de 2 mil milhões de dólares (1,83 mil milhões de euros), sujeita a diversas condições  [21]. A UE propõe-se entregar à Tunísia barcos, radares móveis, câmaras e veículos, para ajudar a reforçar o controlo das fronteiras marítimas e terrestres. A par de tudo isto, está previsto um reforço da cooperação policial e judiciária para dar caça às redes de passadores. As ajudas previstas incluem também importantes meios para recambiar tunisinos em situação irregular na UE. Por outro lado, a UE financia os retornos «voluntários» de migrantes da África Subsariana, da Tunísia para o país de origem: desde o início deste ano já foram financiados 407 retornos, segundo a Comissão  [22]. Além disso, a Tunísia poderá ser considerada um país «seguro» para o reenvio dos exilados tunisinos que se encontram em situação ilegal em solo europeu. A crise socioeconómica sem precedentes, após a aplicação de sucessivos programas de ajustamento, a deriva autocrática, assim como a xenofobia de estado especificamente dirigida contra os exilados subsarianos, promovida pelo chefe de Estado tunisino, torna difícil entender em que bases a Comissão Europeia pretende identificar a Tunísia como «país seguro»  [23]. São numerosos os casos de violência e atentado aos direitos humanos relatados nos últimos tempos pelas ONG  [24].

Uma extensão dos acordos «feitos à medida» para externalizar as fronteiras

A Comissão Europeia pretende alargar esta lógica a autros países do Norte de África e está a propor novo planos de externalização das fronteiras. A externalização tornou-se corrente com a construção do espaço Schengen, onde a livre circulação tem como corolário o estrito controlo das fronteiras externas. Desde a década de 1990, esta política consistiu em transferir este controlo para os países vizinhos, em particular os do Magrebe e, mais recentemente, a Turquia. Em contrapartida, financia instalações de vigilância, centros de retenção e guarda costeira, trata dos vistos, estabelece acordos que obrigam esses países a readmitirem os «ilegais» e endurece a legislação sobre imigração. Em novembro de 2022, o Conselho adoptou um plano de acção da UE para o Mediterrâneo Central  [25] em que 13 das 20 medidas incidem sobre o reforço da cooperação com os países do Norte de África (em particular Líbia, Tunísia, Egipto e Níger) e o Bangladeche. Este plano inclui a formação e assistência dos guardas de fronteira nos países-alvo; a assinatura de acordos de readmissão para facilitar as expulsões para esses países; a implementação de operações de expulsão, com o apoio da Frontex; a cooperação nas áreas de salvamento e resgate e desembarque das pessoas socorridas no mar, nos portos dos países do Sul do Mediterrâneo; etc. Prevê-se a adopção de outros três planos de acção da UE, em 2023, para «a rota do Atlântico, do Mediterrâneo Oriental e do Mediterrâneo Ocidental» [26]. Os estados europeus condicionam progressivamente o financiamento ao desenvolvimento dos seus parceiros não europeus à «segurança» dos movimentos migratórios nesses países.

Por exemplo, a UE prometeu a Marrocos 152 mil milhões de euros para o controlo das migrações ou ajuda ao repatriamento [27]. Na Líbia, a UE e os seus estados-membros mantêm acordos no sentido de encorajar e manter os esforços desse país do Norte de África para interceptar os migrantes no mar e encaminhá-los para centros de detenção, apesar de os abusos contra migrantes nesse país serem conhecidos e documentados [28]. Dentro da UE, o esquema é semelhante: o inquérito da Apostolis Fotiadis publicado em 15 de junho de 2023 pelo site Solomon revela que a Comissão Europeia mais do que duplicou (em comparação com o período anterior) as verbas atribuídas à Grécia para o período 2021-2027 para reforço de equipamentos, sistemas de vigilância e recursos humanos destinados ao controlo de fronteiras. Assim, o orçamento para a vigilância das fronteiras, eleva-se a 800 milhões de euros, enquanto apenas 600 milhões são destinados a operações de busca e salvamento [29].

Resumindo, a condicionalidade é cada vez mais usada nas relações Norte-Sul para gerir as migrações. Para limitar o número de entradas de exilados no espaço Schengen, a UE e os estados-membros estão a aplicar políticas de segurança e a criminalizar os fenómenos migratórios, que sempre existiram, e chuta a responsabilidade da recepção e acolhimento para fora das suas fronteiras. Assim, a condicionalidade é empregue de maneira mais ou menos subtil no âmbito da cooperação para o desenvolvimento, nos acordos comerciais e nos investimentos, nas políticas de readmissão e de vistos, ou nas parcerias e relações político-diplomáticas. Esta lógica já existia, nomeadamente no que diz respeito ao Fundo Fiduciário de Urgência para a África (FFUE), destinado ao controlo migratório, agora alargada e desenvolvida com novos instrumentos de financiamento, como sejam os instrumentos de vizinhança, de cooperação para o desenvolvimento e de cooperação internacional-europeu por esse mundo fora [30]. É inquietante constatar que os fundos de cooperação para o desenvolvimento se concentram actualmente no papel das fronteiras e da externalização, questões essas muito afastadas dos seus objectivos primários, que são a erradicação da pobreza e a melhoria das condições de vida das populações. Mais inquietante ainda: esta lógica está a alastrar e a transformar-se em modelo de referência para a gestão dos fluxos humanos em direcção à União Europeia.

Qual teia de aranha, as fronteiras da UE começam na Mauritânia, no Níger ou no Chade. Estendem-se à Turquia, Líbia, Marrocos. Vistos como espaços militarizados e carregados de segurança, separam espaços filtrados pela morte. Temos de nos interrogar: contra quem se batem os países da UE quando desembolsam milhões para instalar material de guerra às suas portas? Que guerra levam a cabo, e para se protegerem de quê? Ao apostar em políticas que criminalizam os exilados, em vez de lhes garantir vias seguras de passagem, a UE alimenta um discurso público e políticas cada vez mais extremas. A construção de muros nas fronteiras, os discursos anti-migrantes cada vez mais ostensivos, são consequência directa de uma abordagem oportunista e profundamente racista sobre os movimentos da população.

Na prática, e mesmo para além da UE, estas políticas mudam profundamente as paisagens socioeconómicas de regiões longínquas e moldam a geopolítica dos países emissores e de trânsito. Os efeitos colaterais desta política são evidentes em cada porto de escala: nas fronteiras externas da UE, mas também muito a montante, a presença de milhares de imigrantes sem documentos e de pessoas privadas dos seus direitos, lançadas numa espécie de vazio social, guetizadas e marginalizadas, caracterizam esta teia tecida a partir dos países do Norte pela psicose colectiva de um «afluxo maciço e incontrolável de migrantes». Ao mesmo tempo, esta teia de aranha é o produto das relações de dominação e de dependência financeira que os países europeus e as instituições financeiras internacionais estabelecem sobre os países terceiros (com a cumplicidade dos seus governos).

Graças ao recuo progressivo das fronteiras do espaço Schengen, vários chefes de estado exercem um poder autocrático às portas da UE, servindo-se dessas políticas de «chantagem» o de «condicionalidade». De facto, o papel de polícia que a UE e os seus Estados-Membros os exortam a assumir também dá a estes países uma vantagem nas negociações. Em 2020, o presidente turco manipulou os migrantes, fazendo-os crer que a fronteira da UE estava aberta, a fim de conseguir a renegociação do acordo de 2016, segundo o qual Ancara se comprometia a barrar a rota para a UE aos refugiados sírios; conseguiu assim sacar mais 6 mil milhões de euros [31]. Marrocos, ao abrir subitamente a sua fronteira com o enclave espanhol de Ceuta, em maio de 2023, deixando assim partir para a União Europeia cerca de 8.000 migrantes, conseguiu pressionar Madrid sobre a questão do Sara Ocidental [32]. Em suma, a imigração é usada como arma de negociação por certos governos do Sul.

Finalmente, do ponto de vista dos países de origem e de trânsito, estas políticas estão a perturbar movimentos populacionais muito antigos que contribuíram para estabelecer relações económicas, sociais e geopolíticas entre países da mesma região. É o caso, a título de exemplo, do Níger e da Argélia, na região entre o Sael e o Sara. A visão eurocêntrica e a maneira de ver a mobilidade humana de certas pessoas como uma ameaça, como um perigo para as sociedades e para as culturas dos países, têm servido par justificar políticas cada vez mais restritivas na região. Já em 2014 a Argélia tinha assinado um acordo de repatriamento com o Níger que devia incidir apenas sobre as pessoas que se entregavam à mendicidade. No entanto, em 2016, este acordo era aplicado ao conjunto dos migrantes subsarianos presentes na Algéria, sem distinção de casos particulares, apesar de a Argélia já dispor de uma lei sobre estas questões [33]. Assim, estes exilados são à partida deportados para Tamanrasset, no sul da Argélia, e depois enviados para o primeiro posto fronteiriço do Níger, Assamaka, onde a OIM abriu um centro de trânsito cujas estruturas não permitem acolher dignamente as pessoas cujos pedidos de asilo foram negados.

Estas mudanças legislativas na Argélia e no Níger são fruto da cooperação com a UE. No Níger, foi aprovada em 2015 uma lei elaborada com a ajuda dos peritos europeus, para condenar quem ajudasse os migrantes no território [34]. Do ponto de vista europeu, os migrantes que atravessam o Sara dirigem-se forçosamente para a Europa. Na prática, não são tidas em conta as migrações intra-africanas, embora elas constituam a maioria dos movimentos migratórios do continente. De facto, esses migrantes vão permanecer no continente, para trabalharem na Argélia, na Tunísia ou em Marrocos, como é costume fazerem há décadas.

Segundo numerosos investigadores que trabalharam sobre o assunto, é difícil saber se aquelas leis repressivas levaram a uma diminuição das tentativas de passagem. Em contrapartida, é certo que esta abordagem de segurança, directamente aplicada aos países de origem e de trânsito, condena grande número de pessoas à clandestinidade. Enquanto antes da aplicação das políticas de externalização os fluxos se faziam de forma oficial, marcadas pelas taxas de passagem (sendo portanto possível calcular o número de passagens), o mesmo percurso é hoje muito mais complicado, dado que os exilados passam agora por rotas diferentes: mais longas, mais arriscadas, mais onerosas. Assim, as consequências para o tecido social e económico local da passagem à clandestinidade dessas caravanas de migrantes são avultadas. Na região de Agadez, no Níger, existe uma economia estabelecida em torno do trânsito migratório desde a década de 1960, assente nomeadamente nas migrações para trabalho sazonal, que deu origem a actividades de alojamento, transporte, restauração, telefonia móvel, transferências de dinheiro – todas elas condenadas a desaparecerem.

Esta contradição entre a retórica centrada na excepcionalidade perturbadora e as estruturas económicas e políticas expressa-se também na figura dos passadores. O discurso público de numerosos governos parece querer impor a ideia de que a luta contra a imigração clandestina implica o combate contra os passadores. Aí são colocadas as responsabilidades e culpas de todos os exílios. Ora, é preciso ter claro que a clandestinidade é um conceito flutuante em política, já que o migrante clandestino de hoje talvez não o fosse no passado e talvez não venha a sê-lo no futuro. Da mesma forma, a figura do passador, apresentada hoje pela UE e pela comunicação social como um traficante de seres humanos ou um explorador, era anteriormente um comerciante que fazia naturalmente arte do tecido socioeconómico de uma época passada [35].

A externalização das fronteiras e o endividamento privado

Finalmente, o percurso migratório é também indissociável do endividamento das pessoas que pretendem alcançar o solo da UE. Assim, a criminalização da imigração torna a viagem não só perigosa, mas também extremamente cara. Em 2015, calcula-se que um lugar num barco que zarpa das costas turcas para a Grécia custava 1000 dólares, em contraste com os 20 dólares que custava o bilhete do ferry que fazia o mesmo trajecto [36]. O custo do trajecto desde a Nigéria até à Europa, passando pela Líbia, era estimado em 2017 em média entre 4000 e 6000 dólares [37]. Por fim, o custo de atravessar a Mancha a partir de Calais, para chegar ao Reino Unido, foi estimado em 5000 dólares.

A fim de reunir estes montantes colossais, as famílias e as comunidades viam-se obrigadas não só a fazer grandes sacrifícios, mas também a endividar-se, na esperança de que as pessoas migradas conseguissem chegar a terras europeias e trabalhar para os sustentar. Entregues a um destino arbitrário e na total ausência de direitos, as pessoas migrantes podem também ter de se endividar durante a viagem, ficando assim encurraladas no país de trânsito, quando não sujeitas à escravidão, como foi relatado no caso da Líbia. Nesse sentido, as políticas migratórias aplicadas pelos países ocidentais, em particular pela União Europeia, favorecem uma economia da migração muito lucrativa e da qual resulta o endividamento e a miséria não só das pessoas migrantes, mas também das pessoas que lhes próximas no país de origem.

Conclusão

Embora certos governos, como o executivo de Pedro Sánchez em Espanha, se gabem da diminuição de chegadas ilegais de migrantes ao país, o verdadeiro balanço das políticas europeias mede-se actualmente pela quantidade de mortes que produzem e de sofrimento que provocam. Neste artigo quisemos chamar a atenção para a economia política que subjaz às políticas políticas migratórias assassinas e a sua relação com a engrenagem da dívida.

As políticas de migração sublinham geralmente o carácter perturbador da migração para as fronteiras e a ordem social da Europa. Grande parte da classe política usa-as como justificação para impor medidas e políticas excepcionais e de emergência. Esta aparente urgência e excepcionalidade adquire no entanto um carácter sistémico, distanciando os exilados e transferindo para países terceiros mais pobres a responsabilidade de os receber, acolher ou reenviar. Além disso, os quadros de cooperação informal através dos quais a UE e os seus estados-membros organizam este distanciamento das pessoas consideradas indesejáveis, bem como os procedimentos de expulsão dos que chegaram à Europa, escapam a qualquer controlo parlamentar, democrático ou judicial. O acesso restrito à informação e a falta de controlo democrático que os caracteriza levantam a questão da responsabilidade pelas violações de direitos perpetradas fora das fronteiras da UE, no território dos países «cooperantes», na Líbia, na Turquia, no Níger e na Albânia.

Num sistema capitalista em crise, estas políticas tornaram-se um dos mecanismos através dos quais os Estados, e neste caso a UE, procuram desviar a atenção das grandes contradições que estas economias enfrentam. Vimos neste artigo como as políticas migratórias e as várias formas de endividamento andam geralmente de mãos dadas. O regime de excepção aplicado para «gerir os migrantes» contrasta com o sistema de exploração e extracção de riquezas, acrescido de dívidas.

Ao substituir as relações coloniais, todas as relações entre países do Norte e do Sul passam a reger-se pelos mecanismos das políticas da dívida e das migrações. Neste sentido, condicionar a concessão de fundos a países terceiros a compromissos em matéria de gestão das migrações é a expressão mais concreta desta política de externalização das fronteiras e de manutenção da dependência dos países do Sul em relação aos países do Norte. Assim, se os naufrágios no Mediterrâneo e as políticas migratórias da UE e dos seus estados-membros são muitas vezes apresentados na imprensa como independentes, na realidade são a outra face da mesma moeda. Estão também inseridos num conjunto de relações económicas baseadas na dívida. O aspecto sistémico desta relação corresponde também a uma economia política das políticas de migração que responde à necessidade de manter relações de dependência através da dívida, ao mesmo tempo que abre novas áreas de enriquecimento e acumulação.

A polarização política e social em torno da questão da migração é o produto a negação da partilha de valores nas sociedades europeias. Num sistema económico em crise, o foco na migração funciona como uma válvula de segurança e um bode expiatório. Para romper com esta polarização, é preciso recordar a transferência líquida de riqueza dos países do Sul para os países ricos. É igualmente necessário recordar que a lógica do ajustamento estrutural exprime um certo tipo de relações entre o Norte e o Sul. É preciso repensar tudo nos países da UE para que possamos finalmente pôr em prática políticas dignas e proporcionais à importância das migrações para as nossas sociedades. É preciso desintoxicar o discurso público que infunde uma falsa visão das pessoas no exílio. Apresentadas por vezes como ameaças à civilização ocidental, por vezes como vítimas de tráficos de todo o género, nenhuma destas duas visões nos permitirá pensar a migração como aquilo que ela é: um movimento de pessoas que vem de longa data e que deve ser antecipado e apoiado.

As dinâmicas de ajustamento estrutural e de austeridade tanto mergulham os países dependentes na miséria como motivam situações de criminalidade e a partilha desigual da hospitalidade no seio da UE. Não só devem ser criadas rotas seguras para que as pessoas possam viajar sem temer pelas suas vidas, como também devemos garantir que os recursos da ajuda pública ao desenvolvimento cumprem determinados critérios para «promover eficazmente o desenvolvimento económico e melhorar o nível de vida nos países em desenvolvimento» [38]. A UE desvirtua o objectivo da ajuda pública ao desenvolvimento em benefício da cooperação externa em matéria de controlo das migrações, nomeadamente ao condicionar esta ajuda à colaboração do país terceiro na expulsão dos imigrantes clandestinos; mas a cooperação internacional nunca deveria ser condicionada à participação numa política de externalização das fronteiras. Por último, é essencial quebrar os mecanismos económicos que estão na base de toda a abordagem racista das migrações. É necessário iniciar um processo de anulação das dívidas ilegítimas dos países dependentes, para que os povos possam escapar à lógica perversa do ajustamento estrutural.

Na sequência do golpe militar de 26 de julho no Níger e do receio de uma deterioração da situação na região, nomeadamente entre a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e os países já governados por militares, o fenómeno migratório que descrevemos entre o Níger e a Argélia poderá aumentar, conduzindo a uma crise humanitária sem precedentes, se estas políticas de distanciamento dos exilados se mantiverem como estão.

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Tradução de Rui Viana Pereira

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