segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Mobilidade Humana e Coronavírus: A saúde mental dos imigrantes em meio à pandemia da COVID-19

A imagem mostra o desenho de uma máscara facial, embaixo dela está escrito COVID-19
As consequências da pandemia devem ser analisadas e abordadas desde diferentes perspectivas e áreas do conhecimento, uma vez que a crise da COVID-19 está afetando todas as dimensões de nossas vidas, incluindo a saúde, a vida familiar, o emprego, a renda e as perspectivas de futuro.
A saúde mental representa uma parte importante e fundamental na vida de cada pessoa, pois nos permite viver em harmonia com tudo o que nos rodeia, seja no trabalho, na família ou na comunidade, visto que proporciona um equilíbrio físico emocional e espiritual. Porém, situações de incertezas e crise podem provocar respostas psicológicas como medo, preocupação, angustia e estresse[1]. Estas emoções, sentimentos e condutas são respostas normais em momentos nos quais enfrentamos as incertezas, o desconhecido ou as situações de mudança e crise. Portanto, é normal e compreensível que as experimentemos no contexto atual da pandemia, daí a importância de o Estado e as instituições proporcionarem cuidados acessíveis à população em geral no que diz respeito à saúde mental.
No dia 11 de março de 2020, a COVID-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), porém, apesar de representar um risco de saúde para todo o planeta nem todos são afetados da mesma maneira[2]. Alguns estudos, por exemplo, já indicam a associação entre a distribuição desigual de recursos, aprofundando as desigualdades existentes nos grupos mais afetados, entre elas populações em situações mais vulneráveis como sendo pobres negros e outros grupos excluídos como as pessoas em situação de rua, indígenas e imigrantes[3].
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU)[4] tem alertado sobre a necessidade de garantir direitos e atendimento à saúde de imigrantes e refugiados em meio à pandemia, por conta da exposição às situações de maior vulnerabilidade em que muitos se encontram, vivendo em moradias precárias, vítimas frequentes de xenofobia e discriminação, bem como exposição a jornadas extenuantes de trabalho em condições difíceis.
Da mesma forma, a Organização Internacional para as Migrações (OIM)[5] reitera a importância de abordar os impactos na saúde mental que a COVID-19 tem sobre as populações em mobilidade, na medida em que estes experimentam os impactos desta pandemia de maneira muito desproporcional em relação à população em geral, devido às estruturas de apoio social enfraquecidas, somadas às condições socioeconômicas cada vez mais complicadas, principalmente para aqueles que se encontram em condições de irregularidade migratória, o que impede o exercício pleno de seus direitos.
No Brasil, de acordo a Constituição Federal e a nova lei de imigração, todos têm direitos iguais de acesso à saúde. No entanto, apesar de serem direitos garantidos tanto para nacionais como para imigrantes, as dificuldades que estes últimos enfrentam são ainda mais acentuadas, devido às barreiras legais ou socioeconômicas, que, em muitos casos, podem impedir o acesso ao serviço de saúde. Em outros casos, quando os migrantes têm acesso aos serviços, estes podem não ser sensíveis ou apropriados às questões culturais e linguísticas[6]. Daí a urgência de os profissionais de saúde em geral, e de saúde mental em particular, terem acesso a tradutores ou mediadores interculturais que trabalham em parceria com as diferentes comunidades culturais, o que beneficiaria muito os serviços de saúde e ajudaria a atender às necessidades do crescente número de imigrantes e refugiados no Brasil. Tornando possível, assim, reconhecer a natureza dinâmica da cultura e incorporar variáveis ​​culturais em todas as etapas do processo de avaliação, por exemplo, usando entrevistas culturalmente sensíveis ou coletando dados sobre nacionalidade, aculturação, práticas religiosas, racismo, discriminação e valores culturais[7].
Apesar da COVID-19 ser um agente biológico, vem junto com aspectos socioculturais, uma vez que as medidas de proteção como distanciamento, higiene e quarentena não atingem as populações que se encontram em situações de maior vulnerabilidade, pelas condições de pobreza e dificuldades que estas enfrentam no acesso aos serviços básicos, como água, esgoto, habitação, entre outros, o que tem um impacto negativo na saúde deste contingente populacional. Embora medidas de proteção sejam importantes para a prevenção, grupos sociais afetados por diversas desigualdades não possuem as condições necessárias para se protegerem dos impactos que esta pandemia representa. Assim, a violência estrutural a qual os grupos excluídos são expostos, frequentemente somada à estigmatização contra algumas pessoas suspeitas de portarem o vírus, representa um desafio a ser enfrentado. O desconhecimento acerca do novo Coronavírus tem provocado estigma social em relação a pessoas e lugares; por exemplo, sendo rotulado como "vírus chinês"[8] até mesmo por autoridades presidenciais, como a do presidente americano, Donald Trump, e do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, condutas estas que, de alguma forma, atuam como reforçadores de comportamentos discriminatórios e xenofóbicos, dirigidos a certos grupos sociais, entre eles os imigrantes. Os jornais nacionais e internacionais têm noticiado pessoas de origem asiática sendo alvo de violência e discriminação[9], chegando a sugerir a proibição de entrada de cidadãos chineses, evidenciando, mais uma vez, o ódio ao estrangeiro devido às caraterísticas sociais, culturais e físicas que, muitas vezes, são usadas sob o pretexto da causalidade da pandemia para associá-la à doença, como aconteceu com a epidemia do ebola na África.
A discriminação e o racismo, tanto ostensivos quanto sutis, tem importantes implicações para a sensação de pertencimento e bem-estar dos imigrantes. Especificamente, a experiência de discriminação racial tem sido associada a problemas de saúde mental, incluindo estresse, depressão, ansiedade, abuso de sustâncias e ideação suicida. A desconfiança no sistema jurídico afeta a capacidade dos imigrantes de procurarem cuidados de saúde em geral e saúde mental em particular. As consequências negativas de conviver com o preconceito devem ser questões de grande preocupação para profissionais de saúde mental. Apresentações de problemas de saúde mental com base no preconceito incluem: exposição a formas manifestas e sutis ou aversivas de racismo; sentimentos de medo, ansiedade e um senso de comprometimento da segurança; questões de identidade racial; sentimentos de ser uma pessoa de "segunda classe" e falta de um senso de pertencimento, dando lugar a uma menor utilização de serviços de saúde em geral e, em especial, de saúde mental[10].
Crédito: Vek Labs/Unsplash
No contexto atual, embora não existam ainda estudos que demostrem os efeitos da COVID-19 na saúde mental da população em geral, existem evidências de que após o controle do vírus, sentimentos generalizados de luto, medo, solidão e incerteza econômica provocarão uma nova pandemia, dessa vez de problemas de saúde mental. É possível prever que populações já vulneráveis a problemas de saúde mental, como os imigrantes internacionais, sejam afetados ainda de forma mais grave; já que têm sido observados níveis importantes de tristeza, preocupação, medo, solidão, ansiedade, entre outros sintomas, devido à situação de crises de saúde pública que a humanidade atravessa.
Em relação à população de imigrantes, diversos autores têm apontado que a experiência migratória em si envolve uma série de fatores que podem predispor a problemas de saúde mental[11]. A separação da família e do país e a exposição a um novo ambiente físico e contextos não familiares – como outra língua e diferentes regras culturais – somadas à inadaptação linguística e cultural, com a sensação de não pertencimento a um lugar e, ainda, condições econômicas e sociais fragilizadas, fazem com que a imigração cause problemas físicos, psicológicos e sociais que, muitas vezes, se associam a outros riscos inerentes individuais[12].
Os imigrantes apresentam situação de irregularidade e informalidade no trabalho, lutando dia a dia pela sobrevivência e pelo reconhecimento social e legal do Estado. Com a eclosão do novo Coronavírus, a situação dos imigrantes, que já era delicada devido à situação política, econômica e social do Brasil, tende a se agravar ainda mais, na medida em que tem obrigado as autoridades a assumirem medidas restritivas para frear o avanço do vírus, determinando o confinamento da população e o fechamento de todos os serviços considerados não essenciais. Com isto, muitos imigrantes ficaram sem sua principal fonte de renda, provocando que muitos não tenham condições nem mesmo para garantir as necessidades básicas de subsistência, como alimentação e segurança, sendo ameaçados de despejo caso não cumpram com os aluguéis atrasados. Já alguns imigrantes que trabalham com carteira assinada, não tem a possibilidade de cumprir a quarentena em virtude do receio de serem demitidos, expondo-se ao risco de contrair a doença e vivenciando o medo constante de transmiti-la às suas famílias, condições que, sem lugar a dúvidas, tem um impacto negativo importante na saúde mental destas pessoas.
Foram diversos os relatos de desespero, principalmente, de mulheres chefes de família que ficaram sem trabalho e que, como outros imigrantes internacionais, terminaram nas ruas[13] à procura de um lugar para se alimentar e morar. Diante disso, a Associação de Mulheres Imigrantes Luz e Vida tem se mobilizado para alugar uma casa com a ajuda de vaquinhas online[14] visando acolher as mulheres imigrantes com crianças que ficaram nas ruas em decorrência da COVID-19.
Apesar das situações adversas – como irregularidade, trabalhos precarizados, dificuldades de acesso à informação e cuidados em saúde –, surgem ações coletivas de imigrantes[15][16] movidas por solidariedade e empatia que, diante da falta de resposta por parte do poder público face às necessidades desta população, vem mobilizando campanhas para arrecadação de alimentos e atendimento médico e psicológico por meio de plataformas virtuais. Foram várias as iniciativas para que os imigrantes possam enfrentar a pandemia, inclusive campanhas em diferentes países, incluindo o Brasil, como a da "RegularizaçãoJá"[17][18] impulsionada por organizações de imigrantes, a qual representa uma demanda urgente pela regularização imediata, incondicional e permanente de todos os migrantes e refugiados em face da emergência sanitária da COVID-19, com vistas a garantir o acesso à saúde desta população, uma vez que a situação de irregularidade faz com que as pessoas em mobilidade apresentem receios na hora de procurar cuidados em saúde.
Assim, também, os fechamentos de fronteiras impostas para conter a disseminação da COVID-19 têm afetado os direitos de muitas pessoas em movimento[19], deixando-as, ainda mais, expostas a situações perigosas. É possível que os solicitantes de asilo sejam impedidos de cruzar as fronteiras internacionais em busca de proteção ou, em outros casos, imigrantes em condições muito precárias podem ser impedidos de retornarem ao país de origem, como têm acontecido com os imigrantes bolivianos no Chile[20] e no Brasil[21].
Contudo, apesar dos esforços de coletivos e instituições para auxiliar aos diversos grupos de imigrantes com alimentação, tornou-se difícil garantir as necessidades básicas e a incerteza do que possa vir pela frente provoca ainda mais preocupações e angústias, levando muitos a assumirem  decisões difíceis, como a de voltarem ao país de origem por medo de terminar nas ruas. Isso acontece, especificamente, com imigrantes bolivianos que representam o maior grupo de imigrantes em São Paul; população submergida em trabalhos braçais, muitas vezes, sem qualquer proteção trabalhista, que – diante das condições de precariedade – foi obrigada a embarcar em verdadeiras odisseias por conta do fechamento das fronteiras, impedindo uma mobilidade humana segura e ordenada e deixando-a ainda mais exposta ao risco de contrair o vírus.
Embora outros setores sociais anseiem por "voltar ao normal", para muitos migrantes "o normal" já é um estado de crise e, para enfrentar essa crise dupla, é necessário políticas públicas especificas e eficazes para esses grupos.
Em resumo, é evidente um aumento nas vulnerabilidades da população migrante, o que pode agravar ainda mais o risco para problemas de saúde mental, aumentando os níveis de ansiedade, estresse, depressão, angústia, entre outros sintomas clínicos. Para isso, é necessário que se assumam estratégias para atendimento, promoção e monitoramento da saúde em geral e da saúde mental, em particular, desta população.
Lineth Hiordana Ugarte Bustamante é graduada em psicologia pela Universidad Mayor de San Simon, na Bolívia, e mestre pelo programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica da UNIFESP. Atualmente, faz doutorado neste mesmo programa, no qual realiza pesquisa na área de saúde mental. Atuou como voluntária junto ao CAMI (Centro de Apoio ao Migrante) e como mediadora intercultural da OPAS (Organização Panamericana da Saude
museudaimigracao.org
www.miguelimigrante.blogspot.com

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