quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Incertezas migratórias em tempos de pandemia da Covid-19

Covid-19 está entre as doenças que mais matam em cidades da Serra ...
A pandemia da Covid-19 está afetando todo o cenário mundial em diversos setores e, possivelmente, moldando relações jurídicas para os próximos anos. Enquanto não há a certeza de um medicamento eficaz, ou de uma vacina, vários países adotam medidas restritivas severas para conter a proliferação da crise sanitária, e proteger a população, mas são decisões que, por outro lado, podem fomentar a fragilidade de grupos já vulneráveis, em razão da limitação do fluxo migratório, cerceando ainda mais os seus direitos fundamentais, e expondo-os ainda mais ao vírus.

Segundo dados do último relatório do Alto Comissionário das Nações Unidas (ACNUR), até o final de 2019, 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a migrar. São sujeitos que buscam o deslocamento muitas vezes como o último recurso para a sua sobrevivência. Nesse montante, encontram-se pessoas que fogem de guerras, perseguições políticas, por conflitos entre determinados grupos sociais, por perseguições em razão de orientação sexual, questões religiosas. São critérios que poderão determinar o reconhecimento dessas pessoas como refugiadas, segundo a Convenção das Nações Unidas Relativas ao Estatuto do Refugiado de 1951. A maior parte, todavia, não consegue a proteção do mencionado estatuto, porque decidem migrar para escapar da instabilidade econômica, ou em razão dos desastres ambientais.

O direito de migrar é previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 13 [1] . A despeito da crise migratória em razão da emergência sanitária, é notório um movimento que se acentuou há alguns anos, de crescimento do nacionalismo e do xenofobismo. Com tantas restrições, aumentam os casos de irregularidade e de crescimento do tráfico de pessoas, e os migrantes, colocados em uma zona de não pertencimento, são constantemente culpabilizados em razão de uma política do medo, fomentada por governantes que criminalizam (como também incentivam) a migração irregular.

"Migrantes irregulares — sujeitos que são ao mesmo tempo considerados como insiders e outsiders ("outsiders imanentes" nos termos de McNevin) — habitam uma zona fronteiriça ilusória e escorregadia entre inclusão e exclusão, entre dentro e fora. Esses sujeitos desempenham um papel constitutivo nas lutas e conflitos que atravessam os regimes de fronteira. Irregularidade, nesse sentido, é uma das questões estratégicas. Não obstante o fato de que os efeitos mais imediatos de uma política de controle sejam a fortificação das fronteiras e o refinamento de dispositivos de detenção/expulsão, fica claro que os regimes contemporâneos de gestão das migrações não visam apenas à exclusão dos migrantes. (...) A meta, em outras palavras, não é fechar hermeticamente as fronteiras dos "países ricos", mas estabilizar um sistema de diques de contenção, capaz de produzir e manter "um processo ativo de inclusão do trabalho migrante através de sua clandestinização" (DE GENOVA, 2002, p. 439) [2]. Isso pressupõe um processo de inclusão diferencial (MEZZADRA e NEILSON, 2010) [3], no qual a irregularidade emerge como uma condição produzida e como alvo político das políticas de mobilidade". (MEZZADRA, 2012, p.19).

Então, somando-se a pandemia à situação já instável desse grupo de pessoas, os migrantes encontram-se ainda mais expostos. A primeira barreira encontra-se na saída do seu país de origem, feita muitas vezes de forma clandestina, e na entrada em um novo Estado-nação. No cenário atual, em que a doença continua ganhando força, com mais de 15 milhões de infectados e mais de 640 mil óbitos oficiais no mundo, a mobilidade global é severamente impactada. Conforme a Organização Internacional de Migrações (OIM), no dia 16 de julho de 2020, 219 países emitiram 72.525 restrições de viagens. Inclusive, o ACNUR também relata que até 10 de julho países estavam com as fronteiras fechadas sem qualquer exceção. Isso significa que o acesso a pedido de solicitação de refúgio está limitado em diversos locais, o que é uma grave violação aos direitos humanos já consolidados em instrumentos internacionais. No caso do Brasil, a Portaria Conjunta nº 340, de 30 de junho de 2020, prorrogou por mais 30 dias a contenção do acesso de estrangeiros no país. A medida revoga as portarias anteriores (nºs 255 e 319), mas mantém severas restrições, incluindo a possibilidade de inabilitação do pedido de refúgio, contendo um viés discriminatório em relação aos venezuelanos.
Como uma das políticas adotadas para o controle do vírus foi o enrijecimento das regras de circulação dos estrangeiros, é preciso ter a sensibilidade de não violar pactos internacionais de direitos humanos, em especial o princípio do non refoulement [4], previsto no Estatuto do Refugiado. É certo que é preciso conter a crise sanitária dos países, todavia, os direitos dos migrantes também devem ser protegidos, concomitantemente aos direitos dos nacionais. Afinal, a dignidade humana aplica-se a todos.

Maior entrave encontram os deslocados que não se enquadram ao Estatuto, como os deslocados por motivos ambientais e climáticos. Devido à ausência de um instrumento específico, não há uma regra expressa que impeça a sua devolução ao país de onde fugiram em razão do desastre, não sendo aplicável, portanto, o citado princípio que assegura a presença do migrante no Estado receptor.

Após adentrar no território, outra barreira está relacionada ao acesso a serviços essenciais, especialmente para os imigrantes indocumentados. Muitos trabalham na informalidade, ou em empregos com baixas remunerações, e não possuem as condições de cumprir as medidas de isolamento social impostas pelos governos [5]. Nota-se, também, medo do desemprego, a restrição aos serviços de saúde e outros impactos socioeconômicos, tais como moradias inadequadas, ausência de acesso à água potável, saneamento básico e educação [6]. A situação de hipervulnerabilidade é gritante, ainda assim há evidente mitigação dos direitos fundamentais desse grupo, que precisa contar com o apoio da sociedade civil [7], e das instituições públicas, como a Defensoria Pública da União e mesmo o Poder Judiciário, especialmente o federal, para assegurar o mínimo existencial necessário para a sua permanência no país.

Claro que a instabilidade socioeconômica já estava presente no mundo antes da propagação da Covid-19, e não se pode olvidar que a pandemia desmascara as fragilidades que já existiam no mundo globalizado. A desigualdade alcançava patamares gritantes nos anos antecessores. A crise migratória ganha uma nova frente, e certamente será potencializada em razão da recessão do cenário econômico, mas é preciso frisar que milhares de pessoas já não eram contempladas com a possibilidade de um deslocamento saudável. O modelo já estava em falência, seja nas esferas sociais, políticas, ambientais ou econômicas. Resta saber como que serão elaboradas as saídas — se através do enrijecimento ainda maior das regras e dos muros —, ou com a coordenação de políticas públicas e ações voltadas para o desenvolvimento inclusivo e em conjunto. Conforme precisa análise de Rodrigues (2020, p.14):
"Não é o vírus que é responsável por nossa fragilidade como espécie (RIBEIRO, 2020) [8], mas, sim, por desenhos, agendas e (geo)políticas econômicas, por exemplo, de saúde pública e de proteção social. Assim, o que se vive ou se passa no Brasil e no mundo não é devido ao novo coronavírus. O novo coronavírus é apenas o indicador, um expositor de um quadro, de primazia de uma racionalidade instrumental e utilitarista, de exploração, de modelo predatório, concentrador de rendas e riquezas".

O fechamento de fronteiras, apesar de ser posto como necessário para frear a disseminação da pandemia nesse momento de crise, deve ser uma medida que não discrimine ainda mais o imigrante. É preciso sempre recordar que boa parte desses deslocados enfrentam situação de periculosidade ainda maior no seu país de origem. Ainda, campos de refugiados concentrados nas fronteiras são geralmente aglomerados e sem as condições sanitárias para a contenção do vírus. O acolhimento deve ser adequado, respeitando a luta desses indivíduos.

O cenário da pandemia da Covid-19 traz inquietações e incertezas em relação ao futuro das migrações em âmbito internacional, e é preciso pensar como o Direito poderá contribuir para minimizar os reflexos acima apontados. Não existem soluções adequadas intramuros, sendo necessária uma análise cosmopolita que alcance a população em maior escala.

Conjur.com

www.miguelimigrante.blogspot.com

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