Este artigo foi escrito por Danilo
Mekari e originalmente publicado na página Portal do Aprendiz com o título "Ativistas listam oito desafios das
populações migrantes nas cidades brasileiras" em abril de
2016.
A cultura e sabedoria migrante está mais do que espalhada pelo Brasil –
está enraizada. As migrações internas, de norte a sul do país, promoveram
espaços e lugares de trocas e resultaram na formação de um caldeirão de
cultura, saberes e tradições que dão o tom de um país multicultural e diverso.
Migrações externas também tiveram um papel fundamental no
desenvolvimento nacional, contribuindo de inúmeras formas para a expansão do conhecimento.
Uma recente onda migratória – muito estimulada por situações de refúgio –
continua trazendo riqueza cultural e étnica para as cidades brasileiras.
Portanto, não faltam razões para comemorar a presença de migrantes de
incontáveis origens em solo brasileiro. Por outro lado, não são poucos os
motivos para se preocupar com questões que, de tão antigas, soam como
repetitivas: dificuldades de integração, racismo, barreiras linguísticas e
burocráticas, xenofobia e preconceito que ainda assolam grande parte das
pessoas que escolhem sair de sua terra natal em busca de melhores oportunidades
de vida.
No início de dezembro, a Câmara dos
Deputados aprovou o Projeto de Lei 2516/15,
que instaura uma nova Lei de Migrações em detrimento do antiquado Estatuto do
Estrangeiro, estabelecido em 1980, durante a ditadura militar. De acordo com
organizações envolvidas na discussão, como a Cáritas, a Conectas e a Missão
Paz, o novo documento aborda o tema sob
o ponto de vista dos direitos humanos.
Hoje, por exemplo, migrantes não podem participar de protestos ou
sindicatos, correndo o risco de serem expulsos do país ou presos se não
estiverem com a situação regularizada. A nova lei, além de garantir o direito à
participação em manifestações e entidades trabalhistas, também amplia a
política de vistos humanitários, hoje provisória e somente aplicada para sírios
e haitianos. A medida permite que pessoas em situação de risco possam solicitar
refúgio internacional no Brasil.
O Portal Aprendiz conversou
com oito pessoas envolvidas com a temática – desde migrantes a integrantes de
coletivos que lutam por mais direitos à essa população e do poder público –
para entender como as cidades brasileiras trabalham essa questão em diferentes
aspectos. Saiba mais a seguir.
1# Memória
Miguel Dores, representante do Visto
Permanente (natural de Portugal, está no Brasil desde 2013)
Trabalhamos com memória e patrimônio
através do acervo artísticos de migrantes que moram em São Paulo e a partir do
conceito de direito à cidade. Uma das imposições essenciais que se fazem à
migração é que seja temporária, circunscrita em um espaço de tempo. Isso se
projeta nas políticas públicas e na forma como o Estado vê, legislativamente, a
figura do migrante.
O direito à memória é um direito à
ser daqui, em termos culturais, e não dentro de uma visão de aculturação do
sujeito migrante, como uma forma de não aceitar o direito do migrante a
pertencer a esse espaço, com uma cultura que lhe seja estranha.
Devemos resistir à aculturação e
lutar para que os migrantes possam produzir a sua cultura e forma de vida
dentro da cidade, construindo um acervo de memórias e expressões artísticas. É
preciso trazer outras cidades para a mesma cidade.
2# Cultura
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Antonio Andrade, fundador da
plataforma Bolívia Cultural (natural da Bolívia)
O direito à cultura é pleno para o
ser humano, e o migrante tem que participar dessa plenitude não mais como
migrante, mas sim como humano. O respeito e empoderamento da sua cultura em um
ambiente estrangeiro deve ser muito mais estimulado, pois isso vai produzir
dentro da comunidade uma confiança e conquista da nossa identidade de uma forma
muito mais agregadora para a sociedade brasileira.
Se eu como migrante conquisto a minha
cultura e posso compartilhar isso com o brasileiro, todos ganhamos. Somos imigrantes
a partir do momento em que pudermos manter essa identidade cultural. Se bem
estimulada, a cultura vai ajudar o imigrante a produzir mais e melhor,
facilitando a sua integração na sociedade.
Um exemplo claro: imigrantes
japoneses, alemães e italianos, hoje já bem integrados, agregaram muito ao
crescimento da cidade. Nesse momento, falta incentivo ao imigrante latino e
africano.
A cultura é a melhor ferramenta para
combater o preconceito. Tem esse papel de mostrar como a nossa cultura é
semelhante a brasileira, mesmo com distintas facetas. A cultura confirma que
somos diferentes, mas ao mesmo tempo que somos iguais.
3# Acolhimento
Cortesia
de Portal do Aprendiz
José Martin Pumla, da Missão
Paz (natural da Bolívia, está no Brasil há quatro anos)
Temos leis que favorecem os
migrantes, mas poucas são cumpridas. Que os façam cumpri-las! Melhor maneira de
acolher a pessoa é através da informação, promovendo o conhecimento. Muitas
vezes não conhecemos a lei e ficamos quietinhos, sem falar pois não sabemos. O
melhor trabalho que temos a fazer é promover essas leis para garantir esses
direitos.
Participo da Rádio Migrante, que
divulga direitos dos migrantes como Educação, Saúde e Trabalho. Temos um
caminho muito longo para percorrer ainda.
4# Gênero
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Jobana Moya, da Equipe
de Base Warmis – Convergência de Culturas (natural da Bolívia,
há nove anos no Brasil)
A luta do movimento imigrante
tem sido fundamental para a construção de políticas públicas na
cidade de São Paulo, porém precisamos que se inclua a interculturalidade como
eixo transversal, já que os imigrantes trazem consigo a sua cultura – e ela
deve ser contemplada tanto na construção como na implementação de políticas
públicas.
Para termos uma cidadania plena
precisamos ter direito ao voto, caso contrário seguiremos sendo cidadãos de
segunda classe.
Seja homem ou mulher, qualquer
migrante é discriminado. Sendo mulher – porque existe o machismo em todo o
mundo – claro que somos mais discriminadas e invisibilizadas. O homem migrante
vai ter um pouco mais de coragem de falar e sair na cidade, mas as mulheres
imigrantes não. Se para as mulheres locais já é difícil, então para as
mulheres imigrantes e refugiadas é ainda mais. Atualmente, no entanto, as
mulheres imigrantes jogam um papel importante, dando visibilidade à discussão
de acesso à direitos e respeito à nossa diversidade cultural.
5# Participação social
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Veronica Yurja, coordenadora do Si Yo Puedo (natural
da Bolívia, está no Brasil há 25 anos)
O direito de migrar sempre existiu e
sempre vai existir. Por isso, se uma cidade começar respeitando esse direito,
ela vai respeitar mais os direitos humanos. A cidade deve ter garantias mínimas
para aqueles que estão em condições vulneráveis, independente de ser migrante
ou não. Uma cidade que respeita isso deveria valorizar o bilinguismo e
respeitar a interculturalidade e as novas culturas que estão chegando.
Como o Brasil ainda tem uma
legislação antiga como o Estatuto do Estrangeiro, a participação social está
tolhida. É uma legislação retrógrada, na qual os migrantes não têm direito nem
a se manifestar.
A participação social das comunidades
migrantes tem sido apoiada nos últimos anos em São Paulo, com iniciativas de
cultura, direitos humanos e educação. Se o direito político do voto for
estendido para a gente, ajudará muito também.
A nova lei aprovada pelo Congresso
ainda não é ideal. Ela traz um viés de direitos humanos, mas em outros pontos
oficializa práticas como deportação. Ou seja, ainda precisa ser refinada, mas
pelo menos indica uma perspectiva de mudança.
6# Gestão Pública e
direito à cidade
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Guilherme Otero, coordenador adjunto
da Coordenação de Políticas para
Migrantes, da Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania
A gente estruturou boa parte das
políticas públicas de forma que não fossem só ações pontuais e temporárias, mas
que pudessem ter uma permanência e continuidade. Antigamente a migração era
tratada sempre de forma fragmentada e pontual, e não permanente.
Temos cinco ações que foram
estruturantes nesse processo: a criação da coordenação dentro da SMDHC, com uma
equipe técnica e orçamento específico dedicado ao tema; a criação do Centro de Referência e Atendimento
para Imigrantes; os centros de acolhida com quase 600 vagas
somente para imigrantes e refugiados; a lei que institui a Política Municipal para a População
Imigrante; e a criação do Conselho Municipal de Imigrantes. Esperamos
que essas ações estruturem e deem diretrizes para que o município siga
respeitando os direitos dessa população.
Ao longo dos últimos quatro anos,
fizemos ações em conjunto com a coordenadoria de direito à cidade, justamente
para promover a ocupação do espaço público por migrantes e coletivos culturais.
Uma ação na Praça Kantuta, tradicional ponto de ocupação da comunidade latina,
levou durante seis meses oficinas, apropriação do espaço, hortas comunitárias.
Também buscamos regularizar uma série de feiras gastronômicas e culturais da
população migrante em São Paulo, como na rua Coimbra, no Largo do Rosário e na
Vila Prudente.
7# Infâncias
Migrantes
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Daniela Guimarães, idealizadora
do Coral Somos Iguais
Através da música, a gente oferece
oportunidade de crianças refugiadas interagirem em uma convivência de
diferentes culturas, fortalecendo a imagem que essas crianças têm de si mesmas
e da comunidade imigrante no geral. Acredito que, além de ser uma oportunidade
de se profissionalizar, o Coral pode fortalecer o respeito mútuo, mostrando
para todos que as diferenças podem ser administradas de forma pacífica.
O coral é formado por 21 crianças de
Angola, Congo e Síria. Todos são filhos de refugiados. Elas dizem através
da música o que sentem e dão exemplo de como conviver pacificamente com
diferentes culturas e religiões.
8# Acesso aos bens
culturais
Cortesia
de Portal do Aprendiz
Marília Bonas, diretora do Museu
da Imigração
Devemos garantir que todo cidadão –
migrante ou não – se sinta no direito do usufruto pleno da cidade, garantindo
sua segurança e direito de expressão.
Um segundo ponto é, de fato, ampliar
a acessibilidade – sob diferentes pontos de vista – do que é já oferecido com a
valorização de pontos/centros de informação virtuais ou físicos sobre a
programação da cidade (com materiais em diversas línguas), destaques da
programação (com gratuidades e preços) e mapas de transporte público, por
exemplo.
No caso das instituições culturais, o
desafio além de garantir a acessibilidade física, é ampliar a acessibilidade
intelectual e linguística para os mais diversos públicos, com textos que
proponham diversos tipos de experiência e interpretação, nas várias línguas
usadas na cidade, por exemplo.
Todas as fotos desta reportagem foram
feitas durante o Fórum Social Mundial das Migrações de 2016, em São Paulo.
Portal Aprendiz
www.miguelimigrante.blogspot.com
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