segunda-feira, 18 de maio de 2020

Migrantes e refugiados relatam dificuldades após pandemia do coronavírus

Cristiane Mattos
Entre os becos estreitos da Vila Padre Dionísio, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, uma casa de apenas dois cômodos se tornou símbolo de uma nova vida para nove haitianos. Diante da miséria e da falta de infraestrutura no país da América Central, a única alternativa foi recomeçar longe de amigos e parentes queridos. Há dois anos no Brasil, Marie Nerline Augustin, 38, e a família lutam agora contra outro desafio, também grande: a pandemia de Covid-19. “Está muito difícil, são cinco filhos (três crianças e dois adolescentes), que comem muito”, brinca.
Além de cuidar dos filhos, a dona de casa ainda passou a abrigar a irmã, que chegou há um ano e quase não fala português, e a irmã do marido, que tem um filho recém-nascido. “Fico preocupada, porque todo dia meu esposo sai para trabalhar. Mas é só ele que tem um emprego, e com nove pessoas dentro de casa fica muito difícil”, complementa.
O alento veio com a ajuda da comunidade da vila, que distribuiu cestas básicas para as famílias mais carentes que moram no local.
Nos pequenos cômodos muito bem cuidados da casa, a cozinha divide espaço com um quarto-sala. Nas panelas, apenas arroz, feijão e macarrão garantiram o almoço do dia. No entanto, mesmo com a simplicidade e as muitas dificuldades, Marie ofereceu o alimento para a reportagem.
“São pessoas muito inteligentes e esforçadas. Mesmo com tantos problemas, conseguem oferecer o pouco que têm. Os meninos mesmo chegaram aqui e rapidinho estavam falando igual à gente”, conta a líder comunitária Maria Ana, 65, referência para os haitianos na Vila Padre Dionísio.
Filho de Nerline, Nicolson Augustin, 17, fez questão de mostrar à reportagem de O TEMPO a bandeira do Haiti que ele guarda com carinho no quarto que divide com os irmãos e as tias. “Foi a única coisa que eu consegui trazer. Como viajamos ilegalmente, tivemos que deixar tudo para trás e vender o que conseguimos para pagar as nossas passagens”, comenta o adolescente.
Garoto tem medo que pai, único da família que trabalha, adoeça
Mais que os problemas da rotina diária, a principal preocupação do haitiano Nicolson Augustin, 17, é com o pai, carregador na Ceasa de Contagem. “Lá não é possível fazer o distanciamento nem nada. Se ele pegar essa doença, é muito difícil se isolar, já que moramos nove pessoas em casa, com dois cômodos apenas. E não vai receber pelo trabalho”, relata.
Ele conta que um dos momentos mais tristes desde o início da pandemia foi após a ligação de um amigo que vive no Haiti. “Ele me disse que estava com muita fome e não tinha nada para comer”, diz, emocionado.
Mesmo com poucos recursos, Nicolson mandou dinheiro ao amigo, para as compras no mercado. Ele também pensa em realizar um projeto social para amenizar o sofrimento de famílias haitianas, agravado pela pandemia.
Apesar de terem largado tudo para arriscar a vida em outro país, a família não reclama. “Temos um teto, muitas pessoas vêm e ajudam com comida. O Brasil é muito melhor, é tão bom”, elogia Maria Nerline, mãe do garoto. 
Mulheres migrantes se organizam para ajudar família com fraldas e agasalhos
“A gente se identifica, tem muita empatia por outras mulheres, mães que estão passando por problemas. Sabemos o que é a solidão, o que é sentir saudade”, desabafa a peruana Yanaki Herrera, 24, que mora no bairro Sagrada Família, na região Leste de Belo Horizonte, e integra o coletivo de mulheres Cio da Terra, com 20 migrantes responsáveis por diversas iniciativas sociais no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Autônoma, aluna de artes visuais na UFMG e com um bebê de 4 meses, ela é uma das afetadas financeiramente pela paralisação das atividades econômicas após deixar de vender bijuterias andinas em feiras de artesanato.
“Se estivéssemos na nossa cidade pelo menos, onde moram os amigos e familiares, de certa forma seria um apoio. O fato de estar sem os entes queridos por perto é diferente, então aqui somos nós por nós mesmo”, avalia.
Por meio do grupo, foram entregues 350 máscaras, com o apoio de projetos da UFMG, da PUC Minas e do Cefet-MG, e 70 cestas básicas. Para o próximo mês, a expectativa é enviar outras 20 para as chefes de família, além de fraldas e roupas de frio.
A peruana lembra também que muitas migrantes e refugiadas não tiveram acesso ao auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal, o que aumenta o drama das famílias. “Isso é uma questão muito importante e faz com que fiquem sem qualquer outro auxílio governamental, como as cestas”, explica.
Ajude. O Cio da Terra fez uma vaquinha coletiva, cuja meta é arrecadar R$ 16 mil para ajudar financeiramente 40 mulheres migrantes. O objetivo, conforme Yanaki, é contribuir com R$ 200 mensais, por dois meses, para ajudar nos custos da comida.
“É muito gratificante ver como a vaquinha está crescendo, já alcançamos 60% do dinheiro”, disse. Para contribuir, acesse vaka.me/1016250.
Organização humanitária
Responsável por cuidar de três abrigos para venezuelanos em Boa Vista (RR), a organização humanitária Refúgio 343 pede ajuda à população para que a interiorização desses refugiados continue pelo Brasil. “Apenas na capital de Roraima, são 40 mil pessoas que vivem em situação de emergência, a maior parte nas ruas ou em precárias ocupações. Com a pandemia do novo coronavírus, se tornou ainda mais primordial interiorizar essas famílias”, avalia Pedro Figueira, líder da Refúgio 343 em Minas Gerais.
A entidade já abrigou 57 famílias de venezuelanos em todo o Estado. A última delas chegou no mês de abril, com as severas medidas de isolamento social para evitar a propagação da Covid-19. O casal Darwin e Yoleida veio para Belo Horizonte com os sete filhos, que têm idades entre 3 e 21 anos. Todos foram recebidos pela gestora pública Lilian Bernardes, 39, que também faz parte da organização.
“Foi muito importante ver como eles ficaram felizes por estar em segurança. Todos ficaram de quarentena, sem poder ir nem até o elevador, e permanecem em distanciamento social. Já conseguimos emprego para o pai, que começou na sexta-feira, e o filho, que vai trabalhar como assistente de manutenção”, comemora Lilian.
Agora, a entidade tenta matricular as crianças na rede pública de educação. E Yoleida já comemora a nova realidade. "É tudo diferente, mas queremos muito progredir, o que não é fácil. Estamos nos adaptando e muito felizes pela nossa família”, finaliza. 
Pandemia fez preconceito ficar mais evidente
Yanaki Herrera afirma que a crise em decorrência da pandemia fez aumentar o preconceito contra os estrangeiros. “Muitos migrantes e refugiados não vão a lugares onde estão sendo distribuídas cestas por medo de serem tratados com discriminação. Acho importante não esquecer essas minorias”, diz.
De acordo com o último censo feito pela extinta Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania, em 2018, em Minas há quase 17 mil migrantes, concentrados em BH, Contagem e Uberlândia, no Triângulo.
Os refugiados à época, antes de os venezuelanos chegaram, eram 183.  
O Tempo
www.miguelimigrante.blogspot.com

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