sexta-feira, 22 de maio de 2020

A xenofobia e os espaços cotidianos

No último domingo (17/05), João Manuel, angolano de 47 anos, foi morto e outros dois conterrâneos ficaram feridos no bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo, após serem esfaqueados por um auxiliar de mecânico. O crime ocorreu após uma discussão sobre o pagamento do auxílio emergencial federal para imigrantes durante a quarentena.
Infelizmente, esse não é um caso inédito e isolado envolvendo assassinato e agressões a imigrantes na capital paulista. Em agosto de 2015, um haitiano foi alvejado por balas de chumbinho na região da Baixada do Glicério, centro de São Paulo, quando saía de uma igreja. No mesmo dia, na mesma região, outros 5 haitianos sofreram o mesmo tipo de ataque no intervalo de apenas 1 hora e meia. No mês de agosto de 2019, próximo à ponte da Vila Guilherme, no bairro do Pari, três bolivianos foram baleados enquanto participavam de um ensaio com músicas e danças típicas de seus país, dois deles morreram. 
Ao conversar com imigrantes que residem na cidade, são comuns  relatos relacionados ao tratamento diferente com relação aos nacionais no ambiente de trabalho, maus tratos em órgãos públicos, ofensas e ameaças nos bairros em que residem, entre outros. Em um levantamento realizado pela agência Fiquem Sabendo com casos de violação de Direitos Humanos registrados pelo CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), foram identificados 72 casos de violação contra imigrantes de 26 nacionalidades na capital paulista, somente no período de março de 2015 a abril de 2016.
Nos estudos sobre migração internacional, em especial àqueles que destacam a relação entre migrante e cidade, é comum o destaque para as diversas maneiras que os imigrantes transformam e reconfiguram os espaços urbanos onde moram ou frequentam. São estudos importantes, sobretudo, para compreendermos as formas pelas quais o imigrante participa da vida urbana. Porém, sob essa perspectiva, muitas vezes a cidade é apresentada como um contexto vazio, ou seja, sem considerar muitas de suas dinâmicas sociais, culturais e políticas materializadas em pontos específicos do meio urbano. Mas afinal, o que se perde ou se obscurece nesse processo? A simultaneidade de práticas que constituem a cidade e suas manifestações particulares. 
Distante de uma entidade territorial única e homogênea, o espaço urbano se caracteriza por constelações de processos e trajetórias, que diversificam em muitos sentidos a experiência de viver na cidade. E, como no caso de todos nós, a experiência urbana do imigrante também é marcada por certos “roteiros urbanos”, que por diversos motivos direcionam a vivência para alguns lugares e não para outros. Então, não somente o imigrante passa a transformar a cidade, como a cidade também reconfigura sua trajetória.
Aqui, mais do que a cidade em termos genéricos, chamo a atenção para a cidade dos locais ordinários, do dia a dia. A cidade da ida e retorno do trabalho, das instituições que auxiliam no pedido e na retirada de documentos, das festas e igrejas que se frequenta, e, sobretudo, do bairro que se habita. São nesses lugares que o imigrante vivencia os medos, as conquistas, a angústia, os prazeres, a saudade, a indiferença e a esperança. Esses são os espaços nos quais os termos genéricos de cidadania e da condição de imigrante ganham contornos materiais, e onde os encontros e relações podem tomar diversos caminhos, variando da solidariedade à violência.
A reunião de corpos migrantes e a materialização da xenofobia.
Um mapeamento inédito feito pela Cáritas em 2018 mostrou que os solicitantes de refúgio ou refugiados atendidos pela instituição naquele ano residiam, em sua grande maioria, nos bairros da Zona Leste de São Paulo (55%) e no centro da capital (26%). No caso específico dos angolanos (nacionalidade de João Manuel) o bairro de Itaquera (Zona Leste) e República (Centro de São Paulo) são os que mais concentram pessoas do país, respectivamente. E qual a relevância desses dados?
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Crédito: Folha de S. Paulo. Fonte: Caritas
Em primeiro lugar, eles mostram que os imigrantes estão distribuídos de maneira desigual na cidade. Em alguns locais, sua presença é mais frequente do que em outros. Esses, normalmente são bairros com moradia mais barata, como a Zona Leste. E no centro, onde opções de moradia, como ocupações, cortiços, casas de acolhida e abrigos são mais presentes.
Em segundo lugar, é importante considerar que nesses locais da cidade residem pessoas carentes de recursos básicos há tempos. E a presença de “estrangeiros” pode ser vista como concorrência aos já parcos benefícios e serviços disponíveis. Ou seja, são espaços e serviços que passam a ser disputados e certamente ajuda a inflamar a clivagens marcadas entre nacionais e estrangeiros. É aí que as manifestações de xenofobia podem se tornar mais latentes. Um exemplo é o que já aconteceu em 2018 no Centro Temporário de Acolhida (CTA) do Butantã. Na ocasião, a população em situação de rua que ocupava o local não aceitava a presença de venezuelanos, e manifestações de xenofobia, acompanhadas de violência física, ocorreram.
Em suma, são em locais específicos da cidade que nacionais convivem com a presença constante de imigrantes e compartilham espaços, como as já longas e cansativas filas de atendimento em postos de saúde, os pontos de transporte público esperando o ônibus lotado, as poucas vagas de escolas e creches ou disputam uma cama nos abrigos da cidade. Uma relação que pode evocar a lembrança do “privilégio” ao nacional, como na clássica expressão: “Não têm nem para os brasileiros, quanto mais para “estrangeiros”.
Em consequência disso, o imigrante pode ser visto como uma pessoa de “segunda classe”, a quem se destina as sobras. E isso legitimado por uma “razão nacional” reforça a necessidade de separar nacionais e estrangeiros, sempre com perdas para o segundo. Com isso, não quero dizer que somente nos bairros pobres e de classe baixa a xenofobia ocorre. Basta nos atentarmos para discursos presidenciais e de classes dominantes no mundo, inclusive no Brasil, para perceber a sua penetração. E esses discursos, com certeza, engrossam o caldo do preconceito.
Entretanto, para além dos discursos manifestos de xenofobia, é na escala local e em determinadas partes da cidade (em especial aquelas com maior presença de imigrantes) que a sensação de “invasão” é mais sentida. Todos os episódios apresentados narraram agressões ocorridas em bairros com alta concentração de residentes imigrantes. Isto é, foram nos seus lugares de moradia ou de presença rotineira, que experimentaram a materialização da violência em forma de xenofobia.
Avener Prado
Imigrantes nigerianos em Guaiansases, Zona Leste paulistana. O local foi tema da série ‘Novo Bairro Imigrante’, da Folha de SP. Crédito: Avener Prado
Ao contrário de uma visão entusiasta que contempla o lugar como refúgio e segurança, o que se mostra é uma experiência local também marcada pelo medo e insegurança. É preciso atentar, portanto, às maneiras pelas quais esses conflitos são produzidos, e considerar as formas pelas quais a xenofobia passa a compor a experiência urbana do imigrante, redirecionando de maneira inesperada suas trajetórias de vida. A xenofobia e a violência a ela associada, precarizam a vida do imigrante, além de castrarem seu direito à cidade.
Por fim, é fundamental um olhar mais atento à escala local. É ali que o imigrante negocia boa parte da sua existência na condição de “estrangeiro” incômodo. E nos termos desiguais e preconceituosos que mediam esses encontros e relações, é preciso considerar a parcela de racialização dos imigrantes. Pois, como diz Stuart Hall (2013, p. 78): “Na maioria das vezes, os discursos da diferença biológica e cultural estão em jogo simultaneamente”. Lembrando que, em última instância, o racismo opera na inferiorização do outro e na destituição da sua condição humana. E uma das formas que explicitam essa suposta inferioridade é o corpo (negro, feminino, indígena, carregado de sotaque, de traços “típicos”, com vestimentas pouco comuns). É no corpo do imigrante que a fronteira inscreve-se e se apresenta como testamento dessa “inferioridade” em relação aos nacionais. É o corpo, ou uma porção deles, concentrados em alguns locais da cidade que passa a ser hostilizado e visto como problema. É o corpo, ou uma porção deles, que sofre com agressões verbais e físicas de alguns nacionais. É o corpo, ou uma porção deles, que morrem vítimas da xenofobia.
Referências
HALL, S. (2013) Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Caio da Silveira FernandesDoutorando em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, voluntário do “Eixo-Trabalho” na Missão Paz e membro do “Projeto de Promoção dos Direito de Migrantes” (PROMIGRA) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
O estrangeiro
www.miguelimigrante.blogspot.com

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