A pesquisa identificou discursos circulantes que constroem as percepções sobre as migrações contemporâneas em São Paulo – Foto: Flickr/Virada Sustentável
Um novo movimento migratório em direção a São Paulo, iniciado nas décadas mais recentes, tem alterado intensamente a cultura urbana. Representam esse fluxo pessoas vindas, principalmente, do Sul Global, de países como Haiti, Bolívia, Venezuela, Cabo Verde, Congo, Peru e Moçambique. As migrações contemporâneas foram o foco da tese São Paulo, cidade da “diversidade” e do “acolhimento”? Representações das migrações contemporâneas, polifonias urbanas e fábrica dos imaginários territoriais, da pesquisadora Laure Guillot.
O estudo identificou discursos circulantes que constroem as percepções sobre as migrações contemporâneas em São Paulo, transformações na cultura paulistana e como se manifestam as discriminações racistas e xenofóbicas, a partir de entrevistas e análise de produtos audiovisuais institucionais e da grande mídia.
A pesquisa foi desenvolvida em cotutela entre a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e a Universidade Lumière Lyon 2, na França, por meio do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação (PPGCI) e da Équipe de Recherche de Lyon en Sciences de l’information et de la Communication (Elico). No Brasil, a orientação foi da professora Lucia Maciel Barbosa, do Departamento de Informação e Cultura da ECA, e, na França, da professora Marie Després-Lonnet.

A tese foi premiada pela Association Internationale pour la Recherche Interculturelle (Aric), que destacou o trabalho de Laure pela metodologia desenvolvida, que não se limitou à análise de fenômenos, mas, também, construiu diálogos com diferentes culturas. A premiação incluiu um convite para participar do congresso da Aric, realizado em julho na Université Cheikh Anta Diop de Dakar, no Senegal.
Uma pesquisadora estrangeira estudando São Paulo
Laure é francesa e seus contatos iniciais com a cultura brasileira se deram através de sua mãe, professora de Língua Portuguesa. Foi como ela conheceu músicas de artistas brasileiros e, quando jovem, visitou países falantes de português, inclusive o Brasil. A pesquisadora morou em diferentes momentos no País para realizar intercâmbios estudantis, passando por Aracaju, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Quando fez intercâmbio de mestrado no Rio, onde morou na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, ela se surpreendeu ao perceber outras pessoas estrangeiras residentes na cidade, principalmente de Angola e da China. Isso despertou nela a lembrança de imaginários midiáticos estereotipados sobre as migrações para os Estados Unidos e a Europa:
“A gente sempre tem os discursos sobre a Europa, a América do Norte. […] Que as pessoas vão até lá, atravessam o mar, atravessam a fronteira com o México e os Estados Unidos. A gente nunca tem os discursos sobre as pessoas que vão de um país do Sul para outro país do Sul.”
Laure Guillot, pesquisadora
Passada a experiência no Rio e com questões sobre a migração no Sul Global em mente, Laure voltou mais uma vez como intercambista ao Brasil no ano de 2019, vinculada à Université Lumière Lyon 2. Foi quando tomou conhecimento das pesquisas da professora Lucia Maciel, que se dedica ao estudo de culturas migratórias do mundo. Assim, teve início o projeto para o doutorado em cotutela entre as duas universidades.
Laure afirma que, antes de conhecer o Brasil, carregava consigo alguns estereótipos sobre o País formados pela cobertura da mídia francesa, que destacava o futebol e a violência associada ao tráfico de drogas. A partir de seus intercâmbios, ela pôde refletir sobre essas visões que carregava. Sobre São Paulo, onde morou no Centro, perto do Minhocão, ela percebeu uma cultura marcada por um estilo de vida urbano, mas que convive com quebras, como o bairro de Perus, com bastante vegetação preservada, assim como o Jaraguá, que possui uma grande população indígena. “Tem vários mundos em São Paulo, então, de bairro a bairro, você tem vivências diferentes. Foram muitas descobertas”, conta.
Ainda que a pesquisadora tenha se visto como uma pessoa migrante que viveu no Brasil, ela percebeu que suas questões eram diferentes das de estrangeiros negros ou andinos no país. “É importante pensar no meu posicionamento como pesquisadora. Uma pessoa branca, europeia, fazendo uma pesquisa sobre populações migrantes de São Paulo. Eu não tenho as mesmas preocupações das pessoas com quem fiz entrevistas, as mesmas experiências”, reconhece.

Imersões no território físico e midiático: a pesquisa na pandemia, sob um governo de extrema direita
A pesquisadora analisou produtos audiovisuais de entidades que trabalham com a questão da migração, como o coletivo Visto Permanente, materiais de serviços da Prefeitura de São Paulo e episódios da telenovela Órfãos da Terra, exibida na Rede Globo em 2019. Laure também fez visitas ao Museu da Imigração do Estado de São Paulo pouco antes da pandemia e entrevistou pessoas que migraram de países como Bolívia, Argentina, Colômbia, Guiné-Bissau, Haiti e Cabo Verde, além de trabalhadores do Museu da Imigração, da prefeitura e de coletivos que acolhem demandas de pessoas migrantes.
Durante a análise dos capítulos da novela e de vídeos institucionais do Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) da Prefeitura de São Paulo, a pesquisadora notou a recorrência das palavras “acolhimento” e “diversidade”. Ela menciona que “os discursos institucionais da prefeitura, por exemplo, falam que São Paulo é uma cidade da diversidade desde o início, formada pela migração”. Além de influenciar a cultura brasileira, a telenovela, segundo a pesquisadora, leva à criação de imaginários sobre o Brasil em outros países.
“As pessoas que moram nos países da África, por exemplo, têm acesso à telenovela brasileira. Há um imaginário de diversidade, de um povo mestiço e, quando elas chegam ao Brasil, várias delas ficam surpresas, porque atrás dessa famosa democracia racial, elas percebem que existem o racismo, xenofobia e estereótipos”, afirma a pesquisadora Laure Guillot.
No Museu da Imigração, o funcionário Thiago Haruo Santos, da equipe de pesquisa, comenta o choque de pessoas migrantes com a cultura brasileira comparada com as telenovelas: “Tem muitos que falam: ‘Ah, quando eu cheguei aqui, eu conhecia o Brasil pelas novelas da Globo, porque passava novela lá onde eu moro, e quando cheguei aqui não era nada disso. Era muito diferente.’ Isso aparece muito”.
Nos vídeos institucionais do CMI, as migrações contemporâneas possuem uma imagem que remete à vida urbana de São Paulo, com prédios no fundo. “Eu percebi que eles mostram mais o centro da cidade, que é um lugar no imaginário muito ligado à migração contemporânea”, Laure afirma. Em contraponto, nos vídeos do coletivo Visto Permanente, os imigrantes foram acompanhados nos bairros onde moram e as pessoas filmadas escolheram como queriam ser retratadas. “Isso, para mim, foi uma coisa bem interessante. Como mostrar o corpo migrante na cidade? Onde você vai mostrar?”, questiona a pesquisadora.

Estudo traz relatos de pessoas que se percebem alvos de olhares fixos em certos ambientes – Foto: Flickr/Eduardo Augusto
Experiência da população migrante em São Paulo
A experiência de pessoas migrantes residentes em São Paulo é marcada por um sentimento de ambivalência, segundo as entrevistas. Ao mesmo tempo que as pessoas se mostram gratas pelo acolhimento em diversos ambientes, sofrem por perceberem discriminações xenofóbicas e racistas. Há relatos de pessoas que se percebem alvo de olhares fixos em certos ambientes, o que consideram estranho em um país com uma população negra tão grande.
Entre as entrevistas, há relatos de abordagens policiais constrangedoras ou violentas, como conta um dos entrevistados, Pierre Ainda, vindo de Chade, país da África Central. Pierre sofreu uma abordagem policial, à luz do dia, quando estava em seu primeiro ano como intercambista da Pontifícia Universidade Católica (PUC), no curso de Teologia, saindo da faculdade acompanhado de um amigo compatriota e de outros colegas. Ele e o amigo ficaram de costas com as mãos na parede e suas mochilas foram totalmente reviradas:
“Do nada, quatro viaturas da polícia. A gente andava com muita gente e a polícia parou só nós dois. E parou de um jeito bem violento, pegaram a mochila, tiraram os cadernos que a gente tinha dentro. Revistaram tudo. Eu fiquei totalmente apavorado, porque era a primeira vez que eu estava sendo abordado assim. Depois viram que a gente não era o que pensavam”.
Pierre Ainda, da República de Chade
Enquanto morou em São Paulo, Laure também fez visitas ao Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) de Perus. Nessa região, residem muitas pessoas vindas do Haiti, o que fez com que dirigentes do Cieja criassem um currículo intercultural com atividades sobre a cultura migrante.
A professora de Língua Portuguesa, Cristiane Maria Coutinho, que trabalha no Cieja, comenta que “alemães, holandeses, suíços, italianos são muito bem aceitos, bem recebidos [no País]. Os brasileiros têm uma curiosidade de saber da língua, como vieram, como vivem. Isso não acontece com os haitianos.” Cristiane relata que, em festas para a comunidade organizadas pelo Cieja, pessoas brasileiras demonstraram surpresa ao notarem que os haitianos falavam francês. “Havia, também, uma crença dos brasileiros de que o Haiti ficava na África. E a África já é estigmatizada”, diz a professora.
Laure reflete sobre “como as pessoas que chegam agora têm, muitas vezes, as mesmas problemáticas que as pessoas afro-brasileiras” e sofrem com as consequências do racismo estrutural, como formação de novos guetos na cidade e a violência contra a população negra.
A exemplo disso, ela menciona o assassinato do jovem imigrante do Congo, Moïse Kabagambe, em seu local de trabalho, ocorrido no Rio de Janeiro. Laure conta que estava em São Paulo quando aconteceram protestos pela morte do jovem congolês, reunindo imigrantes e pessoas negras brasileiras.
A busca por culturas, saberes e discursos não europeus
Enquanto esteve no Brasil fazendo o doutorado, a pesquisadora Laure Guillot diz ter achado curioso como os estudos brasileiros são influenciados pela produção de conhecimento francesa, com recorrência de nomes como Pierre Bordieu e Michel Foucault. “Eu tinha muita vontade de me afastar dessas teorias europeias, ter uma visão decolonial, de me afastar do eurocentrismo. Usar textos da América Latina no Brasil, textos de autores africanos para países da África. É outra visão, outras perspectivas, outros métodos”, explica.
Um dos conceitos-chave do seu trabalho é o de hibridação, utilizado em estudos culturais e emprestado do antropólogo argentino Néstor García Canclini. O conceito se refere a culturas diferentes entre si que, ao interagirem, criam novas práticas e significados. Uma das intenções da autora foi colaborar com o enriquecimento do conceito e, segundo ela, São Paulo é favorável para isso por ter uma população muito diversa.
Um exemplo de processo de hibridação apontado por Laure está na gastronomia, que promove transformações culturais no território e sentimentos de identificação. “Essa parte, da alimentação, é muito importante na questão da imigração. Muitas pessoas com quem eu fiz entrevistas, que migraram para o Brasil, montaram negócios de comida, que não era o emprego delas no país de origem”, ressalta a pesquisadora.
A tese de doutorado de Laure pode ser acessada na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.
*Texto: Everton da Cruz Souza, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da ECA. Versão original publicada no site da ECA
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado
https://jornal.usp.br/
www.miguelimigrante.blogspot.com
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