quinta-feira, 2 de março de 2017

Tráfico de mulheres na Amazônia: resquícios do colonialismo

Recentemente, no dia 15 de fevereiro, os meios de comunicação em nível nacional e internacional, divulgaram amplamente a notícia sobre a investigação da Polícia Federal que conseguiu desarticular uma quadrilha do tráfico internacional de mulheres que agia no Brasil desde 2010, cuja especialidade era o recrutamento de mulheres para a exploração sexual comercial na Europa. A quadrilha atuava em nível internacional e teria levado mais de 150 mulheres para esta finalidade. As prisões ocorreram simultaneamente em Fortaleza, capital do Ceará, Itália e Eslovênia.
Esta apreensão em Fortaleza não é um fato isolado. O tráfico de pessoas para exploração sexual comercial, especialmente de mulheres não é novidade. Na Amazônia, de maneira especial, trata-se de uma prática pertinente desde os primórdios do período colonial. A nossa literatura é farta de relatos, informações e denúncias de práticas de tráfico de pessoas na Amazônia para fins de exploração sexual e comercial. Diante dos fatos, parece oportuno citar algumas destas obras e pesquisas científicas.
Um dos textos mais antigos sobre esta temática data de meados do no século XVIII e foi escrito pelo missionário Jesuíta João Daniel que viveu na Amazônia entre e 1741-1757. Em sua vasta obra intitulada “Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas”,  volumes I e II, João Daniel descreve detalhadamente as estratégias de recrutamento forçado de trabalhadores indígenas vendidos para as mais diversas regiões de domínio do Império Português. Da mesma forma, detalha as formas mais covardes de violência sexual cometidas contra as mulheres em territórios de aldeamentos forçados  e a mercantilização de mulheres para o trabalho servil e exploração sexual.
A escritora Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro, em sua extensa obra sobre a Amazônia, nos apresenta “Francisca e a utopia da Liberdade”, publicado em Manaus, pela Editora Valer em 2010. Nesta obra a autora dialoga diretamente com um texto do professor David G. Sweet, da Universidade da Califórnia: “Francisca: a escrava da terra”, no qual denuncia as práticas recorrentes de recrutamento e venda de meninas das diversas etnias indígenas da Amazônia, para o trabalho doméstico e exploração sexual em Manaus e Belém e, não raro, em outras regiões do Brasil e até mesmo na França, Portugal e Inglaterra, durante todo o período da colonização.
O Nobel de Literatura de 2011, Mario Vargas Llosa, em “O sonho do Ceuta” informa que infelizmente, o tráfico de pessoas na Amazônia transpôs o período colonial e se “estabeleceu” na região durante todo o ciclo da “Economia da borracha” (1879 – 1947). O escritor denuncia que “neste período cometiam-se na Amazônia, as maiores atrocidades contra os direitos humanos sob a mais absoluta impunidade”. Dentre as mais perversas violações, Llosa denuncia a “rota do comércio de meninas indígenas” realizado entre as cidades de Iquitos, no Peru e Belém, no Brasil.
Manaus aparece na obra como o centro deste comércio de meninas entre 11 e 16 anos de idade destinadas à servidão doméstica e sexual nas residências dos comerciantes, empresários e coronéis da borracha. O recrutamento forçado foi amplamente realizado especialmente na Bolívia, Peru, Colômbia e Brasil, países inseridos no mercado da extração do látex.
Nesta mesma linha de denúncia a professora Mariana Ciavatta Pantoja, em sua obra, “Os Milton: cem anos de história nos seringais”, editado em Rio Branco (AC), pela  EDUFAC, em 2008, corrobora com as denúncias de recrutamento forçado de mulheres e crianças indígenas para o trabalho doméstico e servidão sexual em condições análogas ao trabalho escravo nos barracões dos seringais. A autora narra que “durante as aberturas dos seringais, ocorreram intensos conflitos com os povos indígenas que foram brutalmente assassinados e muitas mulheres indígenas sobreviventes dos massacres foram incorporadas à sociedade seringalista através de casamentos forçados com os seringueiros”. A pesquisadora explica que “as expedições armadas contra os índios, as chamadas “correrias”, eram promovidas pelos patrões dos seringais amazônicos encarregados de dominar os territórios e seus moradores tradicionais”.
Em 2015 Ilko Minev, publicou pela Editora Virgiliae, o romance “A Filha dos Rios” no qual denuncia a organização Zwi Migdal, uma máfia que atuou no tráfico de mulheres da Europa para a América do Sul, estabelecendo uma extensa rota de exploração sexual comercial que passava pela Argentina e chegava até a Amazônia destinando mulheres para a prostituição nos garimpos clandestinos dos principais rios da região.
Em 2012, juntamente com a professora Iraildes Caldas Torres, publicamos, pela Editora Mulheres, o livro “Tráfico de mulheres na Amazônia”, no qual atualizamos os dados e informações mais recentes sobre a atuação das rotas internacionais do tráfico de pessoas, especialmente de mulheres para fins de exploração sexual comercial nesta região em que tais crimes foram ficando impunes e legitimados no decorrer dos ciclos econômicos neocoloniais estabelecendo uma espécie de “naturalização” das práticas de aliciamento, recrutamento, e envio de pessoas para outros países com essa finalidade.
O livro problematiza o crescimento da chamada indústria internacional do sexo que é umas das principais economias contemporâneas pautada na exploração dos serviços sexuais, de modo especial de pessoas em situação de migração irregular. A indústria internacional do sexo vem se modernizando para manter aquecido o mercado por ela produzido com novas modalidades de produtos numa ampla rede de consumo na relação oferta X procura. A exploração da prostituição na indústria internacional do sexo segue a mesma lógica de qualquer outra atividade comercial convencional. As redes de prostituição funcionam como intermediadoras da locação dos serviços sexuais procurando as mulheres que interessam aos comerciantes do ramo da prostituição.
A permanência da Amazônia no contexto das rotas internacionais do tráfico de pessoas, especialmente de mulheres para a exploração sexual comercial vem preocupando e mobilizando diversas instituições governamentais e da sociedade civil que se dedicam à prevenção ou enfrentamento às quadrilhas especializadas nesta modalidade de crime que representa uma das mais perversas violações aos direitos humanos.
Desde 2010 a Rede “um grito pela vida”, instituição vinculada à Conferência dos Religiosos do Brasil, vem atuando no enfrentamento ao tráfico de mulheres na Amazônia e denunciando a livre atuação das quadrilhas internacionais agindo livre e impunimente na região. Rose Bertoldo, coordenadora da rede, denuncia que é cada vez mais intensa a circulação de mulheres em antigas e novas rotas da exploração sexual na economia garimpeira nos países fronteiriços e nos grandes centros urbanos. O professor Benedito Alcântara, pesquisador da Universidade Federal do Amapá e membro da Comissão de Direitos Humanos denuncia as rotas do tráfico de mulheres que atuam nas malhas portuárias dos grandes rios da Amazônia e na rota transatlântica.
Muito ainda poderia ser dito sobre esta temática que pode ser aprofundada nas obras acima descritas e em muitas outras fontes de informações, investigações e pesquisas voltadas para este tema complexo, antigo e profundamente atual na Amazônia que muito desafia toda a sociedade neste mês dedicado à luta cotidiana das mulheres.
 Márcia Oliveira
Dra em Sociedade e Cultura na Amazonia
Atual
www.miguelimigrante.blogspo.com

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