quinta-feira, 7 de abril de 2016

Entre o Terrorismo e as Migrações

O final de 2015 e os primeiros meses de 2016 marcam época. Uma destas épocas tristes, em que a perplexidade se impõe. Surge. Aparece. Transborda pelos olhares, corpos, gestos e silêncios internos. A morte é infalível: a vida desgarra dos ossos e a memória dos que ficam encontra-se com as dimensões do sagrado. Alguns, por seu turno, dirão que os eventos, e a Morte, nos incitam a revisitar alguns princípios, do Humanismo, das religiões e assim por diante.
Humanismo ou sagrado, muitos temas em comum. Entre o terrorismo e as migrações internacionais perfila-se uma era não só dos extremos mas uma era dos dilemas éticos. O que acontece com os “outros”? Como tratar e como tratamos os “outros”? Qual o lugar da hospitalidade nas relações internacionais contemporâneas?

A cena do menino morto na praia, migrante, ser, ser humano. Criança. Ali, num espaço do sagrado, na praia, no Mar. Uma criança, duas, dez, mil, todos nós. Todos nós morremos ali. 2 de setembro de 2015.
Nome próprio: Alyan Kurdi. Espécie: humana. E assim ressurge uma máxima kantiana de que: “originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra” (Paz Pérpetua). Este pensamento alude a um dado bastante simples: de que fazemos parte de uma mesma “comunidade”. Os biólogos chamaram de espécie homo sapiens; os cínicos gregos partiam da compreensão que os homens seriam kosmopolités(cidadão do mundo); muitas das religiões comungam da premissa da “família humana”, pois todos filhos diretos de um mesmo Deus (portanto somos frater, irmãos). Entre essas e outras, a lição é de que partilhamos de uma mesma comunidade e vivemos numa mesma morada (Terra).
Kant em suas teses prossegue dizendo que não se trata de “filantropia, mas de direito, e hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro não ser tratado com hostilidade em virtude de sua vinda ao território de outro”
Quem sabe se esses princípios tenham sido expostos a olho nu para nós, todos nós, partícipes da História e habitantes de um mesmo planeta, quando do drama migratório dos sírios que segue até hoje mas que deixou seu rastro moral, jurídico e político ao mundo?
Europa e suas incongruências.
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Paris, novembro. As flores pluricolores desgarram-se pouco a pouco dos ramos. Era o 13 de novembro. Franceses e turistas, seres humanos todos, divertiam-se na conhecida boate Bataclan. Pronto: o terror, o terrorismo. Não há outro nome. Nome próprio: terrorismo, Estado Islâmico. Resultado: mais de 80 mortos na casa de show. Outras dezenas pela cidade. Morremos, todos morremos.
Perplexidade. Mas o que diachos as pessoas que estavam se divertindo na casa Bataclan têm a ver com a Guerra? Com as guerras? O que têm a ver com os interesses nacionais de ser potência e os interesses das multinacionais? Das multinacionais da guerra.
Choque de civilizações? Nos distamos e nos aproximamos a cada dia dos atentados contra as Torres Gêmeas. Longa noite de 14 anos. Ali muito do mundo mudou. Não que os Estados Unidos já não estivessem desde muito financiando e armando alguns dos bandos que iriam se tornar os terroristas do agora. Não que desde tempos longínquos as políticas imperialistas, coloniais, agressivas, da conquista, não estivessem paulatinamente em voga. Nas Nicaráguas, nos Panamás, nos Irãs, nas Argélias, nos Iraques. Mas o setembro de 2001 reconfigurou as nomenclaturas, reestruturou a geopolítica internacional.
Muitos dirão que a Guerra contra o Terror nada mais é do que o exercício da legítima defesa. Mas quantas legítimas defesas podem se alegar? De nós para eles, do eu para tu, de vós para nós, e assim por diante. Mas será a Guerra a normalidade mesma das relações internacionais como rezam os mais aceitos manuais da área? Será a paz um estado transitório, um interregno entre as guerras? Será a paz sempre escrita com o “p” em minúscula e a guerra com o “g” maiúsculo. Se sim, ora, para que essa forma de organização política? Ela nos serve? Aristocracia, Monarquia, República, Democracia: Soberania. Quem são os soberanos?
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“Estamos em guerra”, disse François Hollande depois dos atentados. Olho por olho, dente por dente. Afinal, mataram os nossos, vilipendiaram a soberania: nada mais justo do que retaliar violentamente. Mas, por outro lado, isto seria eficaz? Mas, por outro lado, não seria fazer sempre a mesma política? Seria mesmo impensável e irrealizável, desde logo, uma outra política que não a do realismo schmittiano do amigo-inimigo?
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Merkel e Hollande.jpg
François Hollande e a chanceler alemã, Angela Merkel, se encontraram para discutir sobre a crise dos refugiados na Europa. (Présidence de la République française)

Final de fevereiro de 2016, novamente as migrações. A mesma França, o mesmo Partido Socialista. O local? Pas-des-Calais. Amontoam-se na região portuária que conecta a França à Grã Bretanha mais de 3.000 pessoas (Le Monde) que esperam o momento de cruzar o canal da Mancha. Essas pessoas vivem no que os franceses denominaram “la jungle” (a selva) de Calais.
No dia 29 de fevereiro a polícia começou a retirada dos imigrantes da zona sul da “selva”. Alguns relatos e análises (ver Passeurs D’hospitalités) dão conta da violência: sob o pretexto de uma “resposta humanitária”, na expressão do primeiro Ministro Manuel Valls, os imigrantes foram expulsos dos locais onde residiam para diversos locais, principalmente para o campo de containers-domicílios montado para esta finalidade ou centres de répit(centros de passagem, dispersos por toda a França). A violência da “resposta humanitária” começa de imediato sem que tenha havido um acordo ou mesmo consulta com os imigrantes. ONGs e associações que trabalham com os imigrantes protestaram, mas não se ouviu.
Os relatos, de imigrantes e de militantes na região, demonstram o descaso com os direitos humanos; deslocamento de imigrantes à força, queima de casas-barracos, jatos de água e gás lacrimogêneo foram artefatos comuns. Dirão os institucionalistas: cumpra-se o desalojamento, cumpra-se a lei. Mas devemos perguntar: que lei é essa? Esta lei é justa?
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Bruxelas, 22 de março de 2016. Capital da União Europeia, a cidade permanece calada. O clima gélido. No metrô e no aeroporto os mais recentes atentados terroristas estilhaçam a vida e os direitos humanos. A discórdia e a hostilidade ganham novamente fôlego. A brutalidade não conhece limites. Territorio est terra plus terror.
Para além da dor – quando finalmente existe o para além da dor – qual seria a melhor forma de honrar as dezenas de mortos? Qual seria a melhor forma de honrar esses inocentes privados da vida por um fanatismo espetacular? Aniquilar os fanáticos? A guerra? A The Economist, comentando sobre os atentados prognostica, estampando o que seria uma tragédia continua: “They will not be the last”.
Se pudéssemos meditar um pouco sobre a frase gandhiana... se pudéssemos. Ela aparece, revela. Nos revela. Disse Mohandas, que foi renomeado Mahatma (a grande alma): “olho por olho e ficaremos todos cegos”. Choque de civilizações. Choque por poder. Ganâncias. Separações entre os homens.
Crises. Crise. Mutações. Não há para onde correr; onde se esconder; como se proteger. Tempo de resgate da filosofia, da filosofia do perdão, da hospitalidade, do bem viver, da felicidade. Tempo da reconciliação. Da conciliação entre a política para a felicidade, de Aristóteles, e a política do “bien vivir” da Bolívia indígena. Da reconciliação, da abertura para o outro. Tempo das pontes e não dos muros. Das pontes entre o “eu” e o “outro”, entre o nacional e o estrangeiro, entre o amigo e o inimigo. Interrupção da lógica do inimigo, transformação do inimigo em amigo, hóspede, próximo, ser humano. Momento da criação ou mesmo do ressurgimento da ideia do Nós. Do “nós” enquanto o coletivo humano, na aurora da hospitalidade.
Mas qual a relação entre o Terrorismo e as Migrações Internacionais? Claro está que não cabe nenhuma justificativa aos atos terroristas. O contrário se dirá das migrações internacionais: lutamos pela livre circulação de pessoas. Mas a discussão que aqui se chama a atenção é outra: é para com os “outros”.
Para os conservadores e  reacionários o Terrorismo e Migrações são fenômenos implicados e a solução seria, através de atitudes e políticas xenófobas, aniquilar os outros, afastar e/ou expulsar os “outros”, controlar e conter a livre circulação de pessoas. Para esta lógica realista efetuada na sua crueza mais sórdida por partidos como Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha) e Front National (Frente Nacional, cujo expoente é Marine Le Pen) o “outro”, os “outros” é que são o problema.
O que estes partidos e líderes nos dizem ao fim e ao cabo é: hostilidade. Logo, o que devemos buscar é: hospitalidade. Quem sabe se invertêssemos a equação, passando do “outro como problema” para “o outro como solução” possamos inaugurar uma nova relação ética da paz. O imperativo da hospitalidade aparece para colocar em dúvida uma conditio sine qua non da política, que ao que tudo indica, deveria ser desconstruída: a ideia de que as relações internacionais operam e só podem operar pela lógica do amigo-inimigo, pela lógica realista da guerra e da conquista de poder. Mas quem nos disse isso? Quem naturalizou esta lógica e como ela foi naturalizada ao longo dos séculos? Será mesmo que “tudo é assim” e “tudo será sempre assim? Não estariam os sinais dos tempos, entre eles os dramas do terrorismo e das migrações internacionais, a nos convocar a ousar novas interpretações e ações nas relações humanas e internacionais?
*Carlos Enrique Ruiz Ferreira é Prof. de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba, membro do Grupo de Reflexão de Relações Internacionais (GR-RI) e pós doutorando de Filosofia da Universidade de São Paulo. Este artigo contou com o auxílio da FAPESP (processo 2014/21421-7).
Carta Capital 

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