terça-feira, 17 de novembro de 2015

O drama da fuga

A sensação de apego se contrapõe diretamente às grandes conquistas humanas e pessoais. É uma vilã do progresso! Muitas vezes, é preciso abrir mão de algo valioso em prol de algo maior, de um objetivo há muito almejado. As correntes circunstanciais tendem a conter o homem e a paralisá-lo no conforto do comodismo. Quando se trata do maior bem do ser humano, no entanto, nada segura o obstinado desejo de mudança. Como num cenário romanceado, uma impressionante massa humana vem impactando o mundo ao protagonizar a dramática saga por um único objetivo: a liberdade. Os conflitos étnicos, políticos e religiosos, especialmente no Oriente Médio e na África, têm levado milhões de pessoas a deixar seus lares e seus países em busca de uma vida tranquila e feliz.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), somente nos últimos cinco anos, 15 conflitos surgiram ou se reiniciaram no mundo, obrigando 11,5 milhões de sírios, 4,1 milhões de iraquianos e 4 milhões de congoleses a migrarem de seus países. Paquistaneses, libaneses e ucranianos também estão entre os maiores afetados pelas crises migratórias. Em meio a tanto desespero, surge uma caminhada muitas vezes trágica e um destino incerto para famílias inteiras. E o Brasil, a exemplo de outros países do continente americano, passou a ser opção para um número crescente de imigrantes. A liberdade política, econômica e social do País, aliada a fatores climáticos e naturais, tem atraído milhares de refugiados. “O Brasil é um país formado por migrações. Então, a gente entende que essa relação com o estrangeiro é parte da nossa história, parte do sangue, está no DNA do brasileiro”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

O controle sobre a entrada e a permanência dos estrangeiros no País está a cargo do Poder Executivo, por meio da Polícia Federal (PF) e do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. O órgão – composto também de membros dos Ministérios das Relações Exteriores, da Educação, do Trabalho e da Saúde, e de representantes da PF e de organizações da sociedade civil – analisa os pedidos de refúgio, com base na Lei 9.474/97, que regulamentou a aplicação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Pode ser considerado refugiado todo cidadão que se viu obrigado a deixar o país de origem por motivo de perseguição racial, religiosa, étnica, social ou política.

Segundo o Ministério da Justiça, a concessão do refúgio tem prazo variável, mas leva, em média, seis meses para ser concluída após o requerimento. Quando o pedido é aceito, apesar de não ser considerado cidadão brasileiro, o beneficiado passa a ter os mesmos direitos civis, podendo emitir documentos de identidade, carteira de motorista e carteira de trabalho, e ter acesso aos serviços públicos de saúde e de educação. Outros direitos, como o de votar, só são concedidos a cidadãos naturalizados. De acordo com o último levantamento do Acnur, o número de refugiados no Brasil dobrou nos últimos cinco anos, saltando de 4,3 mil em 2011 para 8,5 mil em setembro deste ano. Outros 12,6 mil pedidos de refúgio estão pendentes de julgamento. A Síria lidera a lista de refugiados – com 2.077 pessoas vivendo regularmente no Brasil –, seguida de Angola, Colômbia e República Democrática do Congo.

Justiça Federal – No processo de regularização dos imigrantes, a Justiça Federal também tem um papel relevante. É dos magistrados federais a competência para analisar ações cíveis e criminais envolvendo estrangeiros, além das questões de Direito Internacional que sejam fruto de convenções firmadas pelo Brasil com outros países. Em um processo julgado pela Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no início de outubro, os desembargadores federais concederam a um colombiano o direito ao refúgio no Brasil.

A União tentava manter a negativa do Ministério da Justiça em reconhecer a condição de refugiado do colombiano, com base na constatação de que ele atuou como guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Dessa forma, o governo brasileiro determinou sua extradição ao país natal. O requerente, no entanto, conseguiu comprovar que havia sido recrutado como “criança soldado”, que nunca foi incriminado pela justiça colombiana e que serviu à guerrilha de forma compulsória até conseguir fugir sob ameaça de morte. Diante disso, a Sexta Turma entendeu que o estrangeiro foi, na verdade, vítima do grupo extremista e determinou que a União concedesse o refúgio. “Se mostra imperioso reconhecer, ao autor, a condição de refugiado (...) a fim de lhe assegurar direitos fundamentais como segurança, saúde e integridade física, face aos seus fundados temores de, retornando ao país de origem, ver ameaçada a vida”, afirmou o relator do caso, desembargador federal Jirair Aram Meguerian.

Em um processo semelhante, julgado pela Justiça Federal da 1ª Região, um imigrante da República Democrática do Congo conseguiu o benefício previdenciário de prestação continuada (BPC), no valor de um salário mínimo por mês, concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a pessoas com deficiência. O congolês, hoje com 38 anos e morador do Núcleo Bandeirante/DF, foi vítima de sequestro e recrutamento forçado no exército quando tinha 17 anos. Numa tentativa de fuga, em 2001, ele foi baleado pelos militares e perdeu o movimento das pernas. Por temer represálias, acabou fugindo com o irmão para o Brasil, em julho do ano passado. Cinco meses depois, em 9 de dezembro de 2014, o imigrante teve o pedido de refúgio deferido pelo Conare.

O refugiado, então, buscou na Justiça Federal o pagamento do benefício previdenciário, que foi concedido, em primeira instância, pelo Juizado Especial Federal na 24ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF). “A questão posta nos autos diz com o princípio da dignidade da pessoa humana”, sublinhou a juíza federal substituta Maria Cândida Carvalho de Almeida. Como o congolês preencheu todos os requisitos da lei previdenciária, a magistrada atendeu ao pedido dele e aplicou o artigo primeiro da Constituição Federal, que trata da garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais de brasileiros e de estrangeiros residentes no País. “Nesse contexto, a meu ver, devem ser entendidos os artigos 204 e 203 da Constituição, que, respectivamente, impõem ao Estado brasileiro a obrigação de garantir a universalidade da seguridade social e de prover assistência social ‘a quem dela necessitar’”, concluiu a juíza.

O caso ainda será julgado, em segunda instância, mas quem acompanhou o drama do imigrante, de perto, já comemora. “Trata-se de uma sentença valiosa”, declarou Rosita Milesi, diretora do Instituto de Migrações e Direitos Humanos, sediado em Brasília/DF. A ONG, fundada em 1999, oferece apoio a estrangeiros que tentam recomeçar a vida no Brasil. O congolês foi uma das 1.564 pessoas atendidas pela instituição em 2014 – número que não chegou a 160 em 2010 e 290 no ano seguinte. No IMDH, a exemplo do que ocorre em outras instituições do País, os imigrantes recebem as primeiras orientações, comida, roupa, agasalho e uma bolsa de subsistência paga com recursos repassados pelo Acnur e pelo Conare. Eles são encaminhados a vagas de emprego e a escolas de português mantidas por voluntários. A ONG também prepara a documentação para viabilizar o pedido de refúgio. “Eles nos ajudaram muito”, disse Ammar Abu Nabut, 41, que deixou a Síria com a esposa e os três filhos, há um ano e meio, para fugir da guerra.

Além de todo o apoio logístico à família do imigrante, o IMDH deu a Ammar os primeiros eletrodomésticos que ele usa na pequena lanchonete que conseguiu abrir na Asa Sul, em Brasília. O negócio começou com o apoio de um amigo, também sírio, que o estrangeiro conheceu no Brasil. Foi o empurrão que ele precisava para iniciar uma nova história! Para trás ficaram o restante da família e as lembranças de um tempo que Ammar prefere esquecer. A vida tranquila na capital Damasco, onde o imigrante tinha uma loja de roupas femininas, deu lugar a um clima constante de medo e de incerteza. A decisão de abandonar tudo veio depois que as duas filhas do comerciante viram uma bomba explodir perto delas, no meio da rua, matando dezenas de pessoas. As economias do casal foram suficientes para pagar as passagens para o Brasil. “Aqui é bem mais tranquilo. A gente não tem muitos problemas como tinha lá”, conta Ammar, com um sotaque ainda carregado e pouco compreensível. Os filhos mais velhos, de 9 e 12 anos, estão matriculados em escolas públicas e já falam bem o português. “Eles já estão se acostumando, estudam e têm amigos aqui”.

Ressocialização – A inserção social em um ambiente completamente novo e culturalmente distante é um dos maiores desafios dos imigrantes. E é, também, um dos principais alvos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. “A melhor solução para o refugiado é poder voltar pra casa. Mas, se isso não for possível, o que se vai buscar é a integração daquela pessoa no país onde ela se encontra”, afirma Luiz Fernando Godinho (foto).

“A pessoa tem que ser acolhida, tem que ser inserida na sociedade onde ela está buscando essa proteção. E essa integração tem que ser ampla, econômica e social, para que essa pessoa tenha condições de reconstruir a vida”, complementa o porta-voz do Acnur.

Uma das frentes de trabalho do órgão das Nações Unidas e das entidades sociais que dão suporte aos refugiados é a conscientização da população quanto ao drama humano envolvido nos movimentos de migração. O Brasil é tido como um País que aceita bem os imigrantes, mas, ainda assim, as ações de prevenção e de combate à discriminação são constantes. “Realizamos seminários de sensibilização da sociedade, buscando envolver as entidades que se abrem para este serviço humanitário”, revela a irmã Rosita – como é carinhosamente chamada a diretora do IMDH, devido à ligação com a Igreja Católica. Na ONG, um amplo grupo de voluntários ajuda a fazer a integração entre os estrangeiros e a comunidade local. “Os refugiados são como qualquer um de nós, apenas passando por uma situação extrema”, acrescenta Godinho.

A congolesa Souzy Kongnolo, 35, diz que, depois de dois anos morando no Rio de Janeiro, ainda convive com o preconceito de parte da população. “É como se todos os negros fossem angolanos, sem qualquer diferença. Não sou angolana, eu vim do Congo”, desabafa a imigrante, que conseguiu refúgio no Brasil em 2013. No país de origem, Souzy vivenciou os piores horrores da guerra civil. Ela morava com o marido e o pai numa província perto da capital Kinshasa. A família trabalhava com diamantes e tinha um bom padrão de vida, até que uma bomba, seguida de um ataque militar à casa dela, resultou na morte do pai e do marido. Em meio aos destroços, a congolesa, então grávida de seis meses, conseguiu fugir com os filhos gêmeos de sete anos e se esconder na igreja que frequentava. Entretanto, foi encontrada pelos militares e violentada juntamente com a filha.

Desesperada e sem poder voltar para casa, Souzy foi orientada pelo pastor a se refugiar no Brasil, onde seria recebida por um integrante da igreja. “Quando cheguei, fiquei dois dias no aeroporto chorando, com meus filhos passando fome e não tinha ninguém lá”, relembra. Um africano que também falava francês – língua oficial do Congo – ofereceu ajuda e encaminhou a família para a Cáritas Brasileira, entidade de defesa dos direitos humanos ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que também concede apoio a refugiados. A congolesa e os filhos receberam roupas, cestas básicas e um auxílio mensal, além de ajuda para conseguir a declaração de refúgio. Hoje, apesar de ter os filhos matriculados na escola, Souzy ainda mora de favor e tenta reconstruir a vida no Brasil. “Já pedi ajuda a muitas pessoas porque não é fácil”, conta a refugiada. “Na guerra que enfrentei ninguém consegue levar nada. Nem um chinelo ou um copo pra beber água; você só consegue fugir. Eu fugi pela janela, grávida de seis meses com duas crianças na mão”, completa com voz embargada.

Refúgio ambiental – Além dos conflitos armados, outro fator de risco contribuiu para a chegada massiva de imigrantes ao Brasil nos últimos anos. O terremoto que devastou o Haiti em janeiro de 2010, matando mais de 300 mil habitantes, provocou uma evasão de pelo menos 50 mil pessoas rumo ao Brasil, país que já se tornou referência para os haitianos devido ao contato deles com militares brasileiros das forças de paz da ONU enviados ao país.

A maioria dos imigrantes chegou pela fronteira do Peru com o estado do Acre, levando o governo a manter um abrigo provisório no município de Brasiléia/AC. De lá, milhares de haitianos seguiram para outros estados brasileiros, principalmente para as regiões Sul e Sudeste. Mesmo reconhecendo a condição crítica dos estrangeiros, o governo brasileiro se negou a conceder refúgio porque o Estatuto dos Refugiados prevê amparo apenas para os casos de violação aos direitos humanos, sem abranger questões ambientais, como os temores de terremotos e de outros desastres naturais. A solução foi editar uma resolução normativa (nº 97/2013), por meio do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego. A norma abriu uma exceção no Estatuto dos Estrangeiros para conceder vistos diferenciados aos haitianos.

Diversas questões envolvendo o ingresso e a permanência desses estrangeiros no Brasil também chegaram aos gabinetes de juízes federais. Em um dos casos, julgado há três meses pela Justiça Federal em Canoas, no Rio Grande do Sul, a esposa e o filho de um haitiano que veio ao Brasil no ano passado – também pelo Acre, fugindo da extrema pobreza no país caribenho – foram autorizados a desembarcar no aeroporto de Porto Alegre mesmo sem o visto emitido pelo consulado brasileiro. O pedido se baseou no princípio da proteção à unidade familiar, previsto na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “O Estado e a sociedade devem empreender todos os esforços necessários para que os membros da família permaneçam unidos, impedindo, com isso, que, por motivos alheios à sua vontade, sejam eles separados uns dos outros”, pontuou o juiz responsável pela sentença. O magistrado explicou que a lei prevê a extensão da proteção estatal aos familiares do estrangeiro solicitante desde que ele esteja em território brasileiro.

Também no sul do País, a Justiça Federal promoveu diversas audiências públicas e julgou processos relacionados à situação civil de imigrantes de países africanos, como o Senegal, que sofre com a miséria e a falta de emprego. Cidades como Bento Gonçalves e Caxias do Sul estão entre as principais rotas dos imigrantes que buscam um lugar melhor para viver e trabalhar. Em Caxias, também houve uma “invasão” massiva de cidadãos ganeses que aproveitaram a Copa do Mundo para buscar refúgio no Brasil. Ao todo, foram emitidos 8,5 mil vistos para cidadãos de Gana assistirem aos jogos da Copa. Dos 2.529 que tiveram a entrada confirmada pela Polícia Federal, 1.132 não voltaram para casa.

Se, de um lado, a Justiça Federal atua indiretamente no combate ao crime organizado internacional, no controle das fronteiras e no auxílio à polícia para desmantelar quadrilhas especializadas em imigração ilegal, por outro, cumpre um importante papel humanitário ao proporcionar dignidade a seres humanos que perderam praticamente tudo. Ao permitir que um estrangeiro em condições de se legalizar seja integrado ao novo país e tenha a possibilidade de reconstruir a vida, o Judiciário abre os olhos para uma causa nobre que tem motivado outros seres humanos a continuar a luta em favor dos imigrantes. “Temos que compreendê-los, animá-los, dar-lhes esperança e possibilidade de recuperar a autoestima e a confiança na possibilidade de viver em paz”, conclui Rosita Milesi. n

Ambito Juridico
Ricardo Cassiano



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